O cotidiano nos ensina todos os dias. Basta ter olhos de ver e traduzir em palavras a poesia da vida.
segunda-feira, 1 de outubro de 2018
SOMOS RESISTÊNCIA
Nas Eleições de 2014, no auge do desgaste político, Dilma Rousseff vence Aécio Neves no segundo turno. Nesse momento, a direita brasileira entendeu que não chegaria mais ao poder de forma democrática. Entendeu que não ganharia as Eleições Presidenciais nas próximas décadas. Por um motivo muito simples: o povo havia descoberto qual é o grupo político que o representa. Dessa forma, a direita brasileira colocou os escrúpulos de lado e decidiu que iria tomar o poder, ainda que sem votos. Iniciava-se o golpe político. "Um acordão, com o Supremo, com tudo!"
A Presidenta legitimamente eleita sofreu um Impeachment baseado em um crime que deixou de ser crime tão logo ela foi afastada do cargo. Estou falando das pedaladas fiscais.
Mas o grupo que tomou o poder não estaria disposto a permanecer por apenas dois anos. As providências foram tomadas. O ex-presidente Lula, que ganharia as eleições no cenário pós golpe em primeiro turno, foi preso. Após um julgamento que foi o mais rápido que se teve notícia, sua condenação foi baseada em presunção de culpa e não em provas documentais. Tentativa vil de calar a voz do povo. Se a prisão de Lula não tivesse motivação política, Aécio Neves e Geraldo Alckmin também estariam presos, e não disputando tranquilamente as eleições. E para garantir que nenhuma surpresa venha malograr os planos de poder, faltando uma semana para a data da votação, um certo juiz de imparcialidade e caráter questionáveis, vaza uma delação contra o partido em questão. Delação essa que já foi recusada pelo Ministério Público por ausência de provas.
Mas esse grupo, que prefere ferir o Estado Democrático de Direito a acatar a vontade do povo, não contava com um impedimento. O Povo. O Povo Brasileiro que historicamente resiste pacificamente, se faz Resistência mais uma vez. O partido alijado do poder de forma anti-democrática, retorna à cena, da única forma lícita e pacífica: através das urnas.
Estamos a uma semana do pleito e segundo as pesquisas eleitorais Fernando Haddad disputa o segundo turno. Se irá vencer, não sabemos. A certeza que temos é de que NÓS SOMOS RESISTÊNCIA. Sempre fomos. E seremos enquanto for necessário.
sábado, 28 de julho de 2018
O RIO FALA
" Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu."
Eclesiastes
Essa foi a lição de ouro do Rio Cipó.
O Rio fala pelas histórias da sua gente.
Quando eu estava me deslumbrando com a visão do Rio visto de cima, percebi que uma senhora fazia o mesmo. Não me lembro qual de nós puxou a conversa, e acabei perguntando de onde ela era. Foi nessa hora que o Rio falou.
Essa mulher, de aproximadamente 60 anos, disse que mora na localidade, ali mesmo no asfalto das pousadas, desde os 5 anos de idade. Até então, só conhecia o pedaço de rio que corria nos fundos da sua casa. Mas agora havia se aposentado, e começava a conhecer a Serra. Chegou o tempo dela. Da Serra ocupar a alma da mulher. Porque na infância e juventude, essa alma talvez estivesse ocupada demais tentando superar a miséria. Depois, deve ter se ocupado da casa, dos filhos, do trabalho. A alma dessa mulher, que deve ter travado muitas batalhas, agora recebe o alento do Rio. A vida concedeu a ela um prêmio pelas lutas da vida. A Serra agora era dela. E ela era da Serra.
Chegou o tempo e o propósito debaixo do céu e de cima do Rio.
Eclesiastes
Essa foi a lição de ouro do Rio Cipó.
O Rio fala pelas histórias da sua gente.
Quando eu estava me deslumbrando com a visão do Rio visto de cima, percebi que uma senhora fazia o mesmo. Não me lembro qual de nós puxou a conversa, e acabei perguntando de onde ela era. Foi nessa hora que o Rio falou.
Essa mulher, de aproximadamente 60 anos, disse que mora na localidade, ali mesmo no asfalto das pousadas, desde os 5 anos de idade. Até então, só conhecia o pedaço de rio que corria nos fundos da sua casa. Mas agora havia se aposentado, e começava a conhecer a Serra. Chegou o tempo dela. Da Serra ocupar a alma da mulher. Porque na infância e juventude, essa alma talvez estivesse ocupada demais tentando superar a miséria. Depois, deve ter se ocupado da casa, dos filhos, do trabalho. A alma dessa mulher, que deve ter travado muitas batalhas, agora recebe o alento do Rio. A vida concedeu a ela um prêmio pelas lutas da vida. A Serra agora era dela. E ela era da Serra.
Chegou o tempo e o propósito debaixo do céu e de cima do Rio.
AVENGERS
Chegou o dia! Após protelar de todas as formas, no último fim de semana fui convocada a assistir um desses filmes de super heróis da Marvel. Os filmes dos heróis modernos nunca me atraíram. Diferente de filmes como Batman Forever ou os clássicos do Super Man, nos quais prevaleciam a inteligência, e claro, o charme dos protagonistas, nos atuais prevalecem a violência, incluindo heróis espancando heróis.
Mas enfim... não deu pra fugir da sessão cinema em casa. Assistimos Os Vingadores. Cheguei à triste conclusão que não se trata apenas de violência. Esse tipo de filme libera tudo que o ser humano tem de pior. Uma expressão plena do id, sem limites para a crueldade, protegida pela camuflagem do politicamente correto, do heroísmo. Os embates físicos são fazer inveja aos apreciadores dos circos romanos de gladiadores. É permitido matar, destruir construções, praticar atrocidades várias com a desculpa de que "é preciso salvar o mundo dos alienígenas ". Basta colocar a máscara do herói que tudo é permitido.
Sempre vou preferir os filmes intimistas, que mostram o ser humano de forma real, com suas conflituosas batalhas travadas entre seus vícios e virtudes. Batalhas pessoais ou mesmo políticas que são travadas cotidianamente, com a construção paulatina de pessoas melhores.
Continuo me encantando por filmes como Capitão Fantástico, As Sufragistas, Invictus, Histórias Cruzadas, A Garota Dinamarquesa, os bons e velhos Tomates Verdes Fritos e As Pontes de Madison. Sem visão maniqueísta do mundo nem das pessoas. Essas histórias nos ensinam que a arma mais poderosa para salvar o mundo não é capaz de destruir uma florzinha nascida ao pé cerca. Que essa arma é de livre acesso a todos. É preciso apenas ter um olhar atento para localizá-la dentro do emaranhado das coisas do coração. Que o melhor é armar-se de Amor. Que é preciso muita coragem para juntar esse Amor e lutar pelo que se acredita. Os verdadeiros heróis são anônimos em sua maioria. E prescindem da violência.
É claro que não pretendo colocar meu filho dentro
de uma bolha. Ele está no mundo e vai conhecer e vivenciar as coisas desse mundo, as coisas do seu tempo. Continuará assistindo à violência e ao desequilíbrio megalômano dos heróis modernos, certamente criados pela nossa sociedade de consumo. Mas terá sempre na retaguarda a visão de mundo que posso dar a ele. Comentários despretensiosos, que certamente serão sementes plantadas no coração. Dependerá dele fazê-las germinar.
Mas enfim... não deu pra fugir da sessão cinema em casa. Assistimos Os Vingadores. Cheguei à triste conclusão que não se trata apenas de violência. Esse tipo de filme libera tudo que o ser humano tem de pior. Uma expressão plena do id, sem limites para a crueldade, protegida pela camuflagem do politicamente correto, do heroísmo. Os embates físicos são fazer inveja aos apreciadores dos circos romanos de gladiadores. É permitido matar, destruir construções, praticar atrocidades várias com a desculpa de que "é preciso salvar o mundo dos alienígenas ". Basta colocar a máscara do herói que tudo é permitido.
Sempre vou preferir os filmes intimistas, que mostram o ser humano de forma real, com suas conflituosas batalhas travadas entre seus vícios e virtudes. Batalhas pessoais ou mesmo políticas que são travadas cotidianamente, com a construção paulatina de pessoas melhores.
Continuo me encantando por filmes como Capitão Fantástico, As Sufragistas, Invictus, Histórias Cruzadas, A Garota Dinamarquesa, os bons e velhos Tomates Verdes Fritos e As Pontes de Madison. Sem visão maniqueísta do mundo nem das pessoas. Essas histórias nos ensinam que a arma mais poderosa para salvar o mundo não é capaz de destruir uma florzinha nascida ao pé cerca. Que essa arma é de livre acesso a todos. É preciso apenas ter um olhar atento para localizá-la dentro do emaranhado das coisas do coração. Que o melhor é armar-se de Amor. Que é preciso muita coragem para juntar esse Amor e lutar pelo que se acredita. Os verdadeiros heróis são anônimos em sua maioria. E prescindem da violência.
É claro que não pretendo colocar meu filho dentro
de uma bolha. Ele está no mundo e vai conhecer e vivenciar as coisas desse mundo, as coisas do seu tempo. Continuará assistindo à violência e ao desequilíbrio megalômano dos heróis modernos, certamente criados pela nossa sociedade de consumo. Mas terá sempre na retaguarda a visão de mundo que posso dar a ele. Comentários despretensiosos, que certamente serão sementes plantadas no coração. Dependerá dele fazê-las germinar.
sexta-feira, 13 de julho de 2018
CROÁCIA X FRANÇA
Croácia
x França
A Croácia, em evidência
devido à boa campanha na Copa do Mundo, vem sendo acusada de ser um país
nazista. Isso porque um jogador da sua seleção, Demagoj Vida, faz questão de
divulgar que pertence a um grupo de extrema direita. Termina suas declarações
com uma saudação: “Slava Ucrani”, que os entendidos de história afirmam ser o
equivalente local a “Hi Hitler”. É importante considerar porém, que esses
grupos facistas de extrema direita estão espalhados pelo mundo todo. Os
franceses colocaram Marie Le Penn no segundo turno das eleições presidenciais.
Ela perdeu de lavada, mas indica que o grupinho facista francês existe. Nós temos os
Bolsomitos, nossa vergonha internacional. Esse tipo de anencéfalo está
espalhado pelo mundo como uma praga de lavoura. São minoria, mas fazem muito
barulho. Não nos esqueçamos que, assim como nós, os croatas elegeram uma
presidenta. A diferença é que a presidenta da Croácia exerce seu mandato com
alegria e tranquilidade, aparentemente sem riscos de sofrer um golpe político
de caráter misógino como aconteceu em terras brasilis. Talvez a Croácia seja um país melhor que o nosso, com uma Seleção de futebol que ensinou o que é
ter amor à camisa. Virar jogo de semi-final de Copa do Mundo não é para
moleques.
A França! Uh la la!
Confesso que é um país que me encanta. Berço do Iluminismo, influencia o mundo
inteiro com sua cultura. Mas colocaram a Le Penn no segundo turno! A França
também tem suas questões. Tem sido muito questionada pela Comunidade Européia
por ter a maior população carcerária da Europa, sendo que 70% dela é de
muçulmanos. Isso cheira a xenofobia. Da mesma forma que nosso racista Brasil
tem sua população carcerária formada por 65% de negros.
No domingo, torço pela
França. Dessa vez não pelo encantamento de sempre. Mas porque acho que ganhar a
Copa do Mundo pelas chuteiras dos filhos dos imigrantes africanos será uma bela
lição para os franceses. E para o mundo.
sexta-feira, 13 de abril de 2018
VIVER É DIREITO
VIVER É DIREITO
“Maria é vegana porque respeita todas as formas de vida. Maria já abortou quatro vezes” Esses dizeres estampavam o retrato (desenhado) de uma mulher negra e o título da postagem era algo sobre a hipocrisia da esquerda.
Difícil escolher por onde começar, mediante esse festival de desrespeito e disparates. Comecemos então pelo respeito.
O estilo de vida que Maria escolheu para ela é direito e problema dela. Quem gosta de comer carne, que coma. Quem acha que abortar é pecado, que não aborte. Mas a convivência em sociedade exige que as opiniões e estilos de vida diversos dos nossos sejam respeitados e se possível não sejam transformados em ofensas na internet.
Outro ponto que eu tentei inutilmente entender é a relação entre “ser vegano” e “ser esquerda”. Definitivamente não entendo como a opção alimentar de alguém possa ter alguma relação com sua posição política. Não bastasse o tom ofensivo das palavras, a imagem da mulher negra foi a cereja no bolo. Digamos um requinte de crueldade. Ou de preconceito? Mas ao mesmo tempo que a “direita” tenta nos convencer de que a desigualdade racial não existe, se utiliza da imagem de uma mulher negra em uma postagem de intenção pejorativa.
Agora vamos ao ponto crucial. A questão do aborto. Uma questão complexa demais para ser simplificada em um meme que exala preconceito por todos os cantos. A legalização do aborto. O grande problema dessa questão é que sempre se discute se uma mulher tem o direito de interromper voluntariamente a sua gestação. Se o direito da mulher sobre o próprio corpo é mais genuíno do que o direito de uma criança nascer. Essa porém é uma discussão filosófico-religiosa. Jamais teremos uma resposta exata para ela. Cada indivíduo responde a essa questão segundo suas convicções pessoais, e baseada nessas convicções a mulher toma a decisão de interromper a gestação ou leva-la a à termo. A grande questão acerca da legalização do aborto é que uma vez que a mulher tomou a decisão, baseada no conjunto das suas convicções individuais, não é função do Estado dissuadi-la disso. Uma vez que a mulher optou pelo aborto, e fez isso de forma consciente, essa decisão dificilmente será modificada. Sendo cidadã brasileira, essa mulher recorrerá à clandestinidade, já que lhe é negada uma assistência adequada. Nesse sentido, mulheres pobres e ricas remam contra a mesma maré. Mesmo a mulher que possui recursos para pagar pela assistência, não tem garantia de que os profissionais são capacitados, já que tudo ocorre na ilegalidade. Dessa forma, a questão da legalização do aborto é uma questão de saúde pública. Não temos estatísticas oficiais de quantas mulheres morrem por recorrerem à clandestinidade para realizar o aborto, mas certamente esse número não é pequeno. Nesse caso a função do Estado é reduzir a mortalidade da mulher. Independente da questão moral do ato, a mulher tem o direito de receber assistência médica que garanta a sua vida.
Relegar a questão do aborto à égide da moralidade é a verdadeira hipocrisia. É ignorar o problema real da mortalidade de mulheres, que certamente têm direito à vida segundo a legislação vigente no país.
“Maria é vegana porque respeita todas as formas de vida. Maria já abortou quatro vezes” Esses dizeres estampavam o retrato (desenhado) de uma mulher negra e o título da postagem era algo sobre a hipocrisia da esquerda.
Difícil escolher por onde começar, mediante esse festival de desrespeito e disparates. Comecemos então pelo respeito.
O estilo de vida que Maria escolheu para ela é direito e problema dela. Quem gosta de comer carne, que coma. Quem acha que abortar é pecado, que não aborte. Mas a convivência em sociedade exige que as opiniões e estilos de vida diversos dos nossos sejam respeitados e se possível não sejam transformados em ofensas na internet.
Outro ponto que eu tentei inutilmente entender é a relação entre “ser vegano” e “ser esquerda”. Definitivamente não entendo como a opção alimentar de alguém possa ter alguma relação com sua posição política. Não bastasse o tom ofensivo das palavras, a imagem da mulher negra foi a cereja no bolo. Digamos um requinte de crueldade. Ou de preconceito? Mas ao mesmo tempo que a “direita” tenta nos convencer de que a desigualdade racial não existe, se utiliza da imagem de uma mulher negra em uma postagem de intenção pejorativa.
Agora vamos ao ponto crucial. A questão do aborto. Uma questão complexa demais para ser simplificada em um meme que exala preconceito por todos os cantos. A legalização do aborto. O grande problema dessa questão é que sempre se discute se uma mulher tem o direito de interromper voluntariamente a sua gestação. Se o direito da mulher sobre o próprio corpo é mais genuíno do que o direito de uma criança nascer. Essa porém é uma discussão filosófico-religiosa. Jamais teremos uma resposta exata para ela. Cada indivíduo responde a essa questão segundo suas convicções pessoais, e baseada nessas convicções a mulher toma a decisão de interromper a gestação ou leva-la a à termo. A grande questão acerca da legalização do aborto é que uma vez que a mulher tomou a decisão, baseada no conjunto das suas convicções individuais, não é função do Estado dissuadi-la disso. Uma vez que a mulher optou pelo aborto, e fez isso de forma consciente, essa decisão dificilmente será modificada. Sendo cidadã brasileira, essa mulher recorrerá à clandestinidade, já que lhe é negada uma assistência adequada. Nesse sentido, mulheres pobres e ricas remam contra a mesma maré. Mesmo a mulher que possui recursos para pagar pela assistência, não tem garantia de que os profissionais são capacitados, já que tudo ocorre na ilegalidade. Dessa forma, a questão da legalização do aborto é uma questão de saúde pública. Não temos estatísticas oficiais de quantas mulheres morrem por recorrerem à clandestinidade para realizar o aborto, mas certamente esse número não é pequeno. Nesse caso a função do Estado é reduzir a mortalidade da mulher. Independente da questão moral do ato, a mulher tem o direito de receber assistência médica que garanta a sua vida.
Relegar a questão do aborto à égide da moralidade é a verdadeira hipocrisia. É ignorar o problema real da mortalidade de mulheres, que certamente têm direito à vida segundo a legislação vigente no país.
terça-feira, 10 de abril de 2018
ARME-SE DE INFORMAÇÃO
" Sugestão: imprima esse texto, dobre o papel e ande com ele na bolsa. Aparecendo um estuprador, peça a ele para ler. Será bem mais efetivo que um tiro na cabeça do coitadinho. Viva a hipocrisia!"
Um homem fez esse comentário no post de uma amiga. Transcrevi aqui exatamente o que ele escreveu.
O post em questão versava sobre Apologia ao Crime (que é crime). Embora o comentário não tenha nenhuma conexão com o texto, achei tão inusitado que não resisti em tecer algumas considerações.
Primeiro: " aparecendo o estuprador"? será que esse moço realmente pensa que o estuprador é o lobo mau que fica esperando a Chapeuzinho na floresta? Não, amigo! O estuprador está na casa da vítima. Muitas vezes é o pai, o padrasto, o tio que abusam de jovens oprimidas. O estuprador é o namorado, o noivo, o marido, que obrigam a mulher a ter relação sexual quando ela não está a fim. O estuprador é o patrão, o colega de trabalho, que estupra na sala trancada no final do expediente, no banheiro do escritório ou no vestiário da empresa. Então a mulher tem que trabalhar armada, ir ao banheiro armada, tomar banho armada, dormir armada?
Segundo: vamos ser generosos e entender que a limitação desse ser permite que ele considere estupro apenas a violência praticada por um desconhecido na via pública. Para que uma pessoa consiga disparar um tiro na cabeça de outra, ela precisa ter agilidade no manejo da arma, ter uma pontaria certeira e ter coragem para atirar em alguém. Ou seja, a mulher vai conseguir dar um tiro na cabeça de um estuprador, ou de quem quer que seja, apenas se ela for treinada para isso. Caso contrário, o agressor usará a arma contra ela.
Terceiro: Suponhamos que a mulher seja treinada e esteja disposta a atirar no estuprador, Como ela vai reconhecer o estuprador antes que ele inicie a agressão? Então a ideia é atirar no suspeito? Matar todos os homens que andarem rápido na sua direção? Seria uma matança digna de Scorcese!
Então mulheres! Recorram sim, aos textos. Leiam! Informem-se! Na maioria das vezes o agressor que tenta violentar sexualmente uma mulher em via pública está desarmado e desiste da agressão mediante reação expressa. As orientações dos manuais de segurança são:
Se ele estiver desarmado:
- grite o tempo todo,
- não peça por favor, não implore. O estupro é uma demonstração de poder, pedir para parar incentiva o agressor a continuar.
- machuque-o como puder: beliscões, mordidas, chutes e tente fugir.
Se ele estiver armado a orientação é não reagir, pois nesse caso ele pode atirar e matar.
Se a agressão ocorrer procure um hospital e denuncie, ainda que o estupro tenha sido praticado por um conhecido. Denunciar pai, marido, patrão, amigo nem sempre é fácil, Peça ajuda para conseguir fazê-lo.
Espero que tenha ficado claro que andar armada é uma sugestão perigosa além de simplista. A questão do estupro é muito mais complexa.
quarta-feira, 28 de março de 2018
O PROFETA
O
PROFETA
Trata-se de um filme
francês lançado em 2010. Concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro e por
isso ganhou alguma visibilidade à época. Uma das matérias pontuava que o grande
objetivo do filme seria colocar em discussão os problemas do sistema carcerário
na França. Assistindo ao filme recentemente, fiquei pensando quais problemas
efetivamente seriam esses.
O jovem de 19 anos é
preso. Condenado a uma pena de 6 anos por agredir policiais, o filme se inicia
com sua entrada na prisão. Um oficial faz uma entrevista com o jovem
presidiário. Apesar da rispidez com a qual as perguntas são elaboradas, podemos
deduzir que se trata de um acolhimento. Acolhimento mesmo, similar ao
acolhimento feito em uma instituição médica por exemplo. O oficial pergunta se
ele tem alguma profissão. Diante da negativa, pergunta se ele gostaria de
trabalhar durante sua estadia no cárcere. Pergunta se ele professa alguma
religião, se ele tem alguma particularidade alimentar. Isso mesmo! O presídio
francês quer saber se o condenado, ou melhor, o interno, tem restrições
alimentares sejam por questões orgânicas ou religiosas. Questiona ainda se ele
tem familiares que possam ampará-lo no decorrer do cumprimento da pena, se há
alguém que possa enviar a ele algum dinheiro e suprimentos no caso de
necessidade. O interno não sofre nenhuma humilhação por parte do oficial de
polícia que o acolhe. Adentramos a prisão. Celas individuais. Refeições
completas, incluindo iogurte e pães. Banhos quentes diários. O internos têm a
tranquilidade de ter seus pertences pessoais, como TVs, aparelhos de som,
DVDs, cafeteiras, livros, dentro da sua cela
individual sem que outros detentos ou policiais roubem ou estraguem. As visitas
íntimas ocorrem dentro da própria cela. Há uma escola com biblioteca dentro do
presídio. Se for interesse do detento ele pode não apenas se alfabetizar como
seguir um currículo escolar com todas as matérias e professores especializados.
Nosso (anti) herói ingressa na escola e trabalha na lavanderia. Bom, nesse
momento, as comparações com Carandiru se tornam inevitáveis e nos perguntamos:
que raios de problemas tão grandes são esses que há no sistema carcerário
francês? A resposta é cruelmente, tristemente e friamente simples. Direitos
Humanos básicos não são problema no
sistema carcerário francês, nem em nenhum outro país da Europa. Direitos
Humanos, como o próprio nome diz, são direitos de todo ser humano, e países
minimamente sérios têm por hábito não violar esses direitos.
No decorrer do filme
deduzi que talvez o enorme problema fosse a violência gerada pelo sectarismo que ocorre devido à origem étnica dos
detentos. No longa a rivalidade ocorre entre árabes e corsos. A violência em
questão culmina com assassinato de um deles. Além disso um preso continuava a
controlar seus negócios escusos de dentro da prisão. Tráfico de drogas? Não.
Cassinos. Fazendo mais um adendo, a droga mais pesada citada no filme foi
haxixe.
Busquei informações e
pude entender melhor as questões abordadas no filme. A França é o país da
Europa com maior população carcerária e é duramente criticada pela União Européia
por decretar penas muito rigorosas e não trabalhar mais largamente com penas
alternativas. Além disso, 70% da população carcerária na França é de
muçulmanos. As taxas de suicídio também são as mais elevadas da Europa. Em
relação aos suicídios, o filme insinua que muitos deles são na verdade
execuções. Como as celas são individuais, não é difícil cometer um assassinato
e forjar um suicídio, como ocorreu na trama.
A França possui problemas reais com o sistema carcerário. Problemas esses que sequer são
debatidos no nosso país. Para um país chegar a esse nível de debate é
necessário que antes os seres humanos que se encontram nos presídios sejam tratados
como tal. Para que debates mais profundos sobre o nosso sistema penitenciário
ocorra é necessário que os presídios no Brasil se tornem locais de detenção, se
possível de reabilitação e deixem de ser um depósito de gente onde a lei do
mais fortemente armado impera.
Logicamente que se
tratando de Brasil o problema é multifatorial. A começar pela população carcerária
que é a quarta maior do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia. Na França temos
98 presos para cada 100 mil habitantes. No Brasil esse número é de 306 presos
para cada 100 mil habitantes. O dobro da média mundial: 144 presos para cada
100 mil habitantes. A enorme quantidade
de presos no Brasil é um problema a parte. Além das profundas desigualdades sociais
que levam ao aumento da criminalidade, entendo que a cadeia é um local que presta
um importante serviço à segregação social. Um ótimo lugar para jogar pretos e
pobres com a ajuda da nossa boa e velha justiça seletiva.
Pensando no ser humano
de forma geral podemos até questionar se um condenado por qualquer tipo de crime é
passível de reabilitação. As taxas de reincidência criminal não são exatas em
nenhum local do mundo. Na Europa gira em torno dos 25%, sendo que o país com
maiores taxas de reincidência é a Itália. A explicação é que as instalações dos
presídios italianos são muito antigas, o que dificultaria projetos de
reabilitação adequados. A menor taxa de reincidência é da Noruega, onde os
presídios se assemelham a hotéis. Mas seria a reabilitação algo tão impactante
na reincidência criminal? A taxa de reincidência
no Brasil talvez responda a essa questão. Alarmantes 70%. Vergonhosos 70%. Definitivamente transformar os presídios em
locais de humilhação e tortura, privando indivíduos dos direitos básicos a que todos os seres
humanos devem ter acesso não é uma boa estratégia. Repensar e modificar o nosso sistema penitenciário seria
um passo importante para aumentar nossos ínfimos níveis de bem estar social.
Bandido bom existe. É o homem reabilitado.
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018
UM TEMPO QUE INSISTE EM NÃO PASSAR
UM
TEMPO QUE INSISTE EM NÃO PASSAR
“- Negro não é gente
- disse ela (Luzia Silva)
Todos os olhares se
voltaram para a moça. ... O Dr Winter tirou os óculos e começou a limpá-los lentamente
com o lenço.
-Mein liebes Fraülein!
– exclamou ele com sua voz aflautada – o que acaba de dizer é uma inverdade
científica.
Luzia encolheu os
ombros e seus dedos brincaram com o leque.
-Não sei se o que disse
é científico ou não mas é o que sinto.
O juíz fechou os olhos, como para não se
deixar influenciar por aquelas ideias, franziu os lábios reflexivamente e
quedou-se a procurar um ponto de conciliação. Bibiana ficou mais tesa ainda na
cadeira, como cobra pronta a dar o bote. “-Então é isso que essas moças
aprendem nos colégios da corte?” ...
- Mein liebes Fraülen! Repetiu
o Dr Winter – como pode minha graciosa amiga conciliar seu cristianismo com
essas ideias?”
Essa
cena, extraída do livro O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, se passa no ano
de 1853, na reunião de noivado de Luzia Silva e Bolívar Terra Cambará. Ao mesmo
tempo ocorria, na praça em frente ao
sobrado, a execução de um negro que
supostamente havia cometido um crime. Nessa mesma reunião discutia-se a breve chegada do lampião elétrico e da estrada de ferro em
Santa Fé.
Se
pensarmos na evolução tecnológica nesses quase 170 anos decorridos desde então,
poderíamos quase afirmar que nossos antepassados do século XIX viviam em uma
época das cavernas cibernética. Viviam sem eletricidade, se locomoviam em veículos
de tração animal, o sistema de correios era moroso e ineficiente, o que dificultava
a comunicação mesmo entre vilarejos próximos. A chegada dessas inovações chegou
a incomodar os habitantes locais mais antigos, que acreditavam tratar-se da
perdição dos tempos. Mas se pensarmos na evolução do sentimento humano,
chegamos à triste conclusão de que, se o vento da tecnologia cumpriu seu papel,
o tempo do nosso crescimento moral praticamente não passou.
Assim
como o escravo executado sem provas cabais, os negros hoje no Brasil são condenados
diariamente à morte, sob os olhares atentos de uma plateia sedenta de sangue e
exalando ódio. Quando digo hoje, não me refiro apenas ao tempo presente. No dia
de hoje, quantos negros terão sido executados na intervenção federal nas favelas
cariocas? Os negros são a maioria da população carcerária, embora não saibamos
a proporção de negros que lá se encontram sem cometer crime algum, com sua pena
imputada apenas baseada nas palavras de pessoa como Luzia Silva.
Seguindo
a linha do tempo que com tanta maestria nos traça Érico Veríssimo, chegamos ao
ano de 1884, quando Licurgo Cambará, filho de Luzia Silva e Bolívar Cambará, em
um ato político, liberta todos seus escravos. Ativista republicano, Licurgo vislumbra,
na celebração da elevação do povoado de Santa Fé à cidade, a sua própria projeção
política através dessa atitude humanística e abolicionista. Os negros
alforriados porém, celebram a suposta liberdade no quintal do sobrado, sem
acesso às comemorações que se seguem no salão da casa. Adentram a sala, um a um,
apenas durante uma cerimoniosa entrega da carta de alforria, sendo que durante
esse tempo os donos do sobrado têm o cuidado de abrir as janelas, para que o “futum”
da senzala não infeste a sala. Nessa mesma noite Licurgo descobre que sua
amásia, Ismália, espera um filho. Noivo de sua prima Alice Terra, ele decide
que o filho de Ismália não pode nascer. Ismália, filha dos empregados da
estância, existe apenas sob o ponto de vista de Licurgo. Ao contrário do
que ocorre com Ana Terra ou Bibiana, em momento algum Érico Veríssimo narra os sentimentos,
pensamentos ou anseios de Ismália. Sequer conseguimos entender o motivo pelo qual, após ser estuprada por Licurgo ela mantém um relacionamento de longo prazo com ele. A mulher sem voz, subjugada socialmente é
sutilmente retratada pelo autor, tocando o dedo em mais umas das nossas muitas
chagas sociais.
Estamos
no século XXI. Negros e mulheres no Brasil, embora em equivalência numérica com
brancos e homens, ainda precisam lutar diariamente por direitos básicos, como o de ir e vir. É como se aqueles mesmos
habitantes de Santa Fé reencarnassem vezes sem conta ao longo dos séculos, e
permanecessem destilando seus ódios e preconceitos. E o pior, ocupando os
mesmos cargos de poder.
Me
pergunto até quando o povo brasileiro vai perpetuar essa relação de poder. O
direito ao voto foi sem dúvida uma conquista e um progresso social importante,
porém ainda não fomos capazes de consolidá-lo como instrumento de poder, como
nos provam os seguidos golpes imputados
contra a democracia. Me pergunto até quando o povo, composto em sua maioria por
minorias, vai permanecer subjugado por uma classe espúria, movida apenas pelos próprios interesses.
O
vento da tecnologia ventou, mas o tempo da evolução dos sentimentos parece permanecer
estático no Brasil. Enquanto observamos legislação cada vez mais rigorosa contra racismo e misoginia na maioria dos países do mundo, nosso país
segue provincianamente executando as minorias. Diariamente.
domingo, 21 de janeiro de 2018
FALTAVA VOCÊ!
FALTAVA
VOCÊ!
Dois filhos. Um casal.
Perfeito aos olhos do mundo. Mas eu sentia que faltava alguém. Sempre
conversávamos sobre o assunto, meu marido e eu, e chegávamos à conclusão de que
estávamos velhos demais, cansados demais, sobrecarregados demais, com dinheiro
de menos. Não, outro filho não seria viável. Sempre uma decisão tomada com algum
pesar. Mas o assunto insistentemente voltava à pauta daquelas conversas
noturnas de casal. Uma mudança de casa
que não estava nos planos nos deparou com um berço, carrinhos de passeio,
cadeirinha de comer, bebê conforto. Doar? Vender? A resposta veio em uníssono:
vamos esperar mais um pouco! Esperamos. Até uma monótona quarta feira de
cinzas. Resolvi sair um pouco com as crianças e enquanto eu as observava
brincando no parque, a ideia, como uma brisa suave, me soprou novamente ao
coração. “Está faltando alguém!” Imediatamente me lembrei do mantra: “velhos
demais, cansados demais, dinheiro de menos...”
E a razão mais uma vez informou ao coração sobre a impossibilidade e levar
adiante o projeto de um “terceirinho”. O coração não ficou feliz! Mas no
carro, retornando para a casa, eis que o coração, esse insistente, ganha
aliados de peso!
- Mamãe, quando a minha
irmãzinha que está na sua barriga nascer, ela vai ficar com a minha cadeira,
não é? E eu vou ficar com a cadeira do Bê!
- Tem uma irmãzinha na
minha barriga, Lalá? – perguntei, sabendo que definitivamente não tinha ninguém
lá naquele momento.
- Tem a Juju! Juliana!
Uma terceira pessoa,
que ainda não havia se manifestado não perdeu mais tempo, e defendeu o dele:
- E se for o Rafa? Você
não sabe!
E a razão foi obrigada
a se dobrar aos apelos do coração. Afinal, crianças captando pensamentos, ou
emoções, não poderia ser classificada como coincidência pura e simples. Cheguei
em casa e atingi meu marido à queima roupa:
- A gente vai ter mais um filho!
Ele abriu apenas um dos
olhos, tentando despertar do cochilo que tirava no sofá. Conseguiu emitir
um “-É?”
- É! Já tem até nome!
Juju! Ou Rafa!
Ele ficou um tempo
olhando para o nada. Achei natural que tivesse assimilando a ideia. Preparei
mentalmente todos os argumentos possíveis para convencê-lo e aguardei a
resposta:
-Juju de quê? Só se for
de Júlia. Juliana não gosto não!
Argumentos para quê,
quando a vida segue seu curso e apenas nos mostra os caminhos a serem
trilhados! Ao contrário do pesar que me tocava quando a decisão era a oposta,
me invadiu uma alegria tão genuína, que eu não pude compreender como só agora
conseguimos enxergar o óbvio. Que as razões da razão eram tão absolutamente
pueris se comparadas à grandeza de receber o integrante que faltava. A alegria
dessa tomada decisão não pôde ser contida. Disparei mais um tiro, dessa vez no
grupo de amigas de muita afinidade. Precisava dividir com mais pessoas!
Comuniquei que havíamos decidido aumentar a família, e imediatamente as
felicitações que se seguiram equivaleram a felicitações de nascimento. Uma
delas comentou: “- Que incrível! É a primeira vez que participo da comunicação
da decisão de ter um filho!” Naquele momento pensei: “-Acho que sou meio fora
da curva!”
Iniciamos os
preparativos básicos. Ácido fólico, dieta mais saudável, projeto de viagem.
Bem, esse último não fazia parte dos preparativos, mas veio bem a calhar. Há um
ano atrás havíamos, pela primeira vez, deixado as crianças com a avó para fazer uma viagem relâmpago ao Rio e
assistir aos Rolling Stones. Decidimos que iríamos programar uma fugidinha
dessas todos os anos. Um fim de semana fora, sem crianças. Organizamos então uma ida à Ouro Preto. E como a vida segue seus
meandros sem se importar muito com os atropelos, por essa época havia quatro
felizes gestantes na minha equipe de trabalho. A chefe coçava a cabeça
preocupada com a cobertura da escala à época das licenças. Não me contive, seja
por um senso de responsabilidade, ou simplesmente porque a empolgação
transbordava do coração e tinha que sair pela boca...
- Então se prepara que
daqui a pouco serão cinco.
Olhos arregalados:
“-Você está grávida?”
“-Ainda não!” e apontei
para o calendário: “-Mas nesse fim de semana vou para Ouro Preto com meu
marido. Então a partir dessa segunda feira pode me considerar grávida!”
Evidentemente
tratava-se de uma brincadeira. O desejo de que essa fala se concretizasse era
muito grande, mas naquele momento eu jamais imaginaria que cinco semanas após
um despretensioso fim de semana em Ouro Preto eu estaria anunciando a gravidez!
Agora era contar para
as crianças. Gostaríamos que elas ficassem sabendo de uma forma especial.
Planejamos para o sábado à noite, quando estaríamos tranquilos em casa.
Idealizamos um momento intimista, de plenitude familiar! Mas no sábado pela
manhã, na fila da padaria...
-Mamãe, tem um bebê na
sua barriga!
Meio sem saber se
aquilo era uma pergunta ou uma afirmação, tentando retomar o controle dos
fatos, não pude elaborar nada melhor que a verdade. Respondi bem baixinho:
- É! Tem sim!
A reposta dela foi o
sorriso mais lindo que própria manhã de sábado!
Mas a sagacidade de um
menino de seis anos, aliada à emocionada empolgação, não permitiu que nenhuma
preocupação com o tom de voz o assolasse.
- Você está grávida?
Metade da padaria olhou
para nós. Discretamente, claro! Mas aguardavam a confirmação!
- Estou, Bê!
- Mas você fez exame?
A outra metade da
padaria parou. O garoto tinha razão, precisava-se ter certeza!
- Fiz!
- O papai já sabe?
-Sabe!
A velhinha que estava
na nossa frente não se conteve e nos felicitou animadamente:
-Parabéns! Que ótima
notícia para começar o dia!
Só me restou informar
ao marido que o momento intimista familiar havia sido substituído por uma
coletiva na padaria!
A terceira barriga tem
suas particularidades e encantos. Se resume à ausência de estresse. Não precisa
comprar nem arrumar muita coisa. Quase tudo já está lá. Não dá tempo de passar
mal, nem de pensar demais. Existem duas
criaturinhas que absorvem quase todos seus pensamentos e ações. O que há é um
encanto novo. O encanto das crianças se encantando. Elas se tornam agentes
ativos da gestação. Querem saber, pegar, querem ver o leite que vai sair das
mamas, medem quase diariamente o tamanho da barriga. Sentem os pinotes do bebê
com as mãos, com a cabeça, com o corpo, com a alma. “O bebê me chutou!” “O bebê
me mordeu! Ele mordeu minha cara!” Disputam a posse da barriga, disputam com a
barriga o foco da câmera fotográfica. Tornam a terceira gestação uma
experiência ímpar.
E fomos navegando nas
águas tranquilas até o início do terceiro trimestre balançar nosso barquinho do
amor com ondas revoltas. O ultrassom mostrou uma insuficiência placentária
leve, mas o bebê estava bem, se movimentando, crescendo. A princípio nada mais
preocupante. Necessário apenas acompanhar o ganho de peso. Nos agarramos
firmemente ao nosso barquinho e seguimos no mar da tranquilidade. Mas os
ultrassons que se seguiram nos tiraram da calmaria. O ganho de peso não se
mantinha satisfatório. Adentramos um mar alto, ora de brisas, ora de ventanias.
Era preciso fazer repouso para melhorar o fluxo placentário. Medida pouco
factível quando se mora no terceiro andar e se tem uma demanda de dois filhos
em idade escolar. Com algum empenho traçamos estratégias para viabilizar
minimamente a recomendação médica. Seguimos firmes, fingindo não reparar na
angústia que sorrateiramente fazia o coração pulsar diferente.
Feriado de fim de ano.
Todos no almoço de família, parte da estratégia “mamãe precisa descansar para o
Rafa crescer”, e eu fico em casa com a barriga, o repouso, a angustia. A mente,
que já há algum tempo se mantém continuamente pensando no assunto, como se
tivesse tomado vida própria, aproveita o silêncio da casa e passa a me enviar
pensamentos que vão sendo captados não se sabe bem pela razão ou pelo coração,
ou pela dupla que finalmente entrou em consenso. Insuficiência placentária
leve, para um ganho de peso muito ruim. O coraçãozinho está sempre mais
acelerado. Então um letreiro luminoso se acende diante dos meus olhos:
“Ecocardiograma fetal”. Crianças cardiopatas são a realidade do meu trabalho. Melhor
mesmo é dar uma conferida no coração desse aqui de dentro.
Esperei passar o
feriado e liguei para a pessoa que me foi indicada. “Tem uma vaga para hoje”. O
ultrassom realizado pela manhã havia sido favorável, o bebê tinha ganhado um
pesinho. Com a constatação de um ecocardiograma normal seria possível concluir
nossa jornada retornando à rota das águas mansas. Já me imaginei dentro do táxi
de volta para casa ligando para o marido: “- Amor, eco normal! Podemos ficar
tranquilos!”
Mas as águas mansas
haviam ficado, em definitivo, nas rotas passadas. A médica constatou uma alteração na circulação fetal. Um ducto, muito importante para a circulação, estava se fechando. Sem
maiores repercussões nesse momento. Mas seria necessário acompanhar. De perto.
Duas noites em claro depois retorno ao consultório para repetir o exame. O lado
direito do coração do bebê já não funcionava bem, estava com suas dimensões
aumentadas, e já começava a causar repercussões nos outros órgãos. A médica
falou aquilo que eu já sabia, mas ainda não havia elaborado. “-Melhor interromper!” Descobri a sensação de ter o coração arrastado por um
tsunami. Tentei recorrer à mente, coitada! Ela fez um enorme esforço para
concatenar as ideias. O marido no plantão, a obstetra viajando. Era como estar
presa em um labirinto mental, as ideias soltas teimavam em não se assentar.
Então a médica ecocardiografista, que eu praticamente acabara de conhecer, agiu
com a presteza de uma velha amiga. Foi calmamente capturando aquelas ideias
embaralhadas e colocando cada uma no seu devido lugar. Assoprou levemente a
poeira das dificuldades, oferecendo soluções práticas. Acalmou meu ânimo
conturbado, me colocando em condições de tomar as providências necessárias. Embora
o tempo de chorar não me tenha sido concedido, também não se fez tão
necessário. Avisei ao marido da urgência em salvar o pequeno, interrompendo a
gestação. Ele, que ainda precisava atender os pacientes do seu ambulatório
semanal, se encaminhou para o local sem saber como dispensaria tantas pessoas
que haviam demorado tanto tempo para marcar a consulta. Não precisou dispensar
ninguém. Chegando ao ambulatório, não encontrou os pacientes. A secretária
informou que houve um erro na central de marcações, e a agenda estava livre.
Sem acreditar no que acabara de acontecer seguiu ao meu encontro. Com a ajuda
da minha obstetra, que gentilmente atendeu minha ligação mesmo estando em um
aeroporto do Panamá, conseguimos uma outra médica obstetra para fazer o parto
ainda naquela noite. Com a ajuda de outro amigo a vaga de CTI foi obtida, já
que o bebê nasceria prematuro. Os
caminhos, se abrindo de forma tão célere e precisa, nos deu a definitiva
convicção de que não caminhamos a esmo por esse mundo. Foi como sentir o dedo
de Deus traçando as rotas. Os profissionais envolvidos, que não eram nossos
conhecidos, nos dedicaram não apenas o exercício preciso da sua especialidade.
Nos foi ofertado a mais genuína solidariedade, nos fazendo experimentar na vida
real o conceito de amor ao próximo.
Uma passada rápida em
casa para pegar algumas coisas, e claro, avisar às crianças que o irmão
nasceria ainda naquela noite. Disfarçamos a tensão e tentamos imprimir
naturalidade ao tom de voz:
-Pessoal, atenção para
uma notícia: O Rafa vai nascer!
Explosão de euforia é a
expressão que mais se aproxima do que foi a reação dos dois. Pulavam no sofá,
pulavam em cima de mim, gritavam em coro que o Rafa ia nascer! Contrastando com
a cara de preocupação da minha mãe, que obviamente deduziu que algo não estava
bem, a alegria genuína das crianças nos deu mais um alento de esperança de que
daria tudo certo. Troquei com minha mãe mais olhares do que palavras Não estava
nos meus planos nublar a alegria das crianças com qualquer sombra de
preocupação.
O nascimento do Rafael
se deu com inteira tranquilidade, sem maiores obstáculos ou dificuldades. Ele nasceu
muito bem para quem o fazia quatro semanas antes do planejado e com um coração
que não estava na plenitude das suas funções. Chorou forte, se movimentava bem,
respirava... foi encaminhado ao CTI neonatal. A médica que havia feito tão
precisamente seu diagnóstico, retornou ao hospital após seu nascimento para
fazer o ecocardiograma pós natal. Fez questão de ir até a sala de recuperação
anestésica para me dar a notícia. Era mesmo uma constrição ductal. Com o estabelecimento
da circulação pulmonar após o nascimento, tudo estava bem. O coração funcionava
de forma praticamente normal. Exclamei em lágrimas:
-Você salvou a vida
dele!
Com um sorriso aberto
de quem compartilhava sinceramente da nossa alegria, ela respondeu:
- Mas esse é o nosso
trabalho! Você já fez isso quantas vezes?
Ela estava certa. São muitas
as ocasiões nas quais as mães, felizes com a boa recuperação dos filhos, me
dirigem palavras similares de gratidão e afeto. Pude então entender a real
dimensão das lágrimas de gratidão de uma mãe.
Meu marido não continha
a euforia!
-Deu tudo, tudo certo!
Me deu até fome agora!
Ligou para o delivery e
pediu um sanduíche de picanha.
“É, esta tudo certo!”
Pensei.
Dois dias no CTI,
apenas para nos certificarmos de que tudo estava bem. E estava. Dois dias na
enfermaria para garantir mais uns cem gramas, e estamos em casa!
As roupinhas são as dos
irmãos e dos primos. Havíamos planejado comprar as coisas após o natal, com
mais tranquilidade. E o nosso pequeno não tem nada que seja especificamente
dele. Aprendemos algo sobre o que é essencial e o que é dispensável. Vestido
com o macacão que foi do irmão, e com a patente semelhança entre os dois,
entrei na máquina do tempo e revivi a sensação do primeiro filho. Rafael é um
novo primeiro filho. Nos trouxe vivências únicas e inesquecíveis.
Estamos indo muito bem.
Às vezes a cabeça fica cheia de farofa ou com um pitoresco aroma de linguiça. O
ímpeto de beijar o irmão bebê quando ele acorda é tão intenso que mal dá para
terminar de engolir a comida! Todas as coisas por aqui estão salpicadas de
carinho e bocejos. As noites em claro se convertem na alegria de uma boa
mamada. Ainda temos a diferença de um peso para tirar!
Essa é a história do
Rafael que eu escrevo. Daqui para a frente é com ele. Que seja uma história tão
incrível quanto foi até aqui!
Agora não restam
dúvidas!
Faltava você!
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