domingo, 21 de janeiro de 2018

FALTAVA VOCÊ!

FALTAVA VOCÊ!

Dois filhos. Um casal. Perfeito aos olhos do mundo. Mas eu sentia que faltava alguém. Sempre conversávamos sobre o assunto, meu marido e eu, e chegávamos à conclusão de que estávamos velhos demais, cansados demais, sobrecarregados demais, com dinheiro de menos. Não, outro filho não seria viável. Sempre uma decisão tomada com algum pesar. Mas o assunto insistentemente voltava à pauta daquelas conversas noturnas de casal.  Uma mudança de casa que não estava nos planos nos deparou com um berço, carrinhos de passeio, cadeirinha de comer, bebê conforto. Doar? Vender? A resposta veio em uníssono: vamos esperar mais um pouco! Esperamos. Até uma monótona quarta feira de cinzas. Resolvi sair um pouco com as crianças e enquanto eu as observava brincando no parque, a ideia, como uma brisa suave, me soprou novamente ao coração. “Está faltando alguém!” Imediatamente me lembrei do mantra: “velhos demais, cansados demais, dinheiro de menos...”  E a razão mais uma vez informou ao coração sobre a impossibilidade e levar adiante o projeto de um “terceirinho”.  O coração não ficou feliz! Mas no carro, retornando para a casa, eis que o coração, esse insistente, ganha aliados de peso!

- Mamãe, quando a minha irmãzinha que está na sua barriga nascer, ela vai ficar com a minha cadeira, não é? E eu vou ficar com a cadeira do Bê!

- Tem uma irmãzinha na minha barriga, Lalá? – perguntei, sabendo que definitivamente não tinha ninguém lá naquele momento.

- Tem a Juju! Juliana!

Uma terceira pessoa, que ainda não havia se manifestado não perdeu mais tempo, e defendeu o dele:

- E se for o Rafa? Você não sabe!

E a razão foi obrigada a se dobrar aos apelos do coração. Afinal, crianças captando pensamentos, ou emoções, não poderia ser classificada como coincidência pura e simples. Cheguei em casa e atingi meu marido à queima roupa:

 - A gente vai ter mais um filho!

Ele abriu apenas um dos olhos, tentando despertar do cochilo que tirava no sofá. Conseguiu emitir um  “-É?”

- É! Já tem até nome! Juju! Ou Rafa!

Ele ficou um tempo olhando para o nada. Achei natural que tivesse assimilando a ideia. Preparei mentalmente todos os argumentos possíveis para convencê-lo e aguardei a resposta:

-Juju de quê? Só se for de Júlia. Juliana não gosto não!

Argumentos para quê, quando a vida segue seu curso e apenas nos mostra os caminhos a serem trilhados! Ao contrário do pesar que me tocava quando a decisão era a oposta, me invadiu uma alegria tão genuína, que eu não pude compreender como só agora conseguimos enxergar o óbvio. Que as razões da razão eram tão absolutamente pueris se comparadas à grandeza de receber o integrante que faltava. A alegria dessa tomada decisão não pôde ser contida. Disparei mais um tiro, dessa vez no grupo de amigas de muita afinidade. Precisava dividir com mais pessoas! Comuniquei que havíamos decidido aumentar a família, e imediatamente as felicitações que se seguiram equivaleram a felicitações de nascimento. Uma delas comentou: “- Que incrível! É a primeira vez que participo da comunicação da decisão de ter um filho!” Naquele momento pensei: “-Acho que sou meio fora da curva!”

Iniciamos os preparativos básicos. Ácido fólico, dieta mais saudável, projeto de viagem. Bem, esse último não fazia parte dos preparativos, mas veio bem a calhar. Há um ano atrás havíamos, pela primeira vez, deixado as crianças com a avó  para fazer uma viagem relâmpago ao Rio e assistir aos Rolling Stones. Decidimos que iríamos programar uma fugidinha dessas todos os anos. Um fim de semana fora, sem crianças. Organizamos  então  uma ida à Ouro Preto. E como a vida segue seus meandros sem se importar muito com os atropelos, por essa época havia quatro felizes gestantes na minha equipe de trabalho. A chefe coçava a cabeça preocupada com a cobertura da escala à época das licenças. Não me contive, seja por um senso de responsabilidade, ou simplesmente porque a empolgação transbordava do coração e tinha que sair pela boca...

- Então se prepara que daqui a pouco serão cinco.

Olhos arregalados: “-Você está grávida?”

“-Ainda não!” e apontei para o calendário: “-Mas nesse fim de semana vou para Ouro Preto com meu marido. Então a partir dessa segunda feira pode me considerar grávida!”

Evidentemente tratava-se de uma brincadeira. O desejo de que essa fala se concretizasse era muito grande, mas naquele momento eu jamais imaginaria que cinco semanas após um despretensioso fim de semana em Ouro Preto eu estaria anunciando a gravidez!

Agora era contar para as crianças. Gostaríamos que elas ficassem sabendo de uma forma especial. Planejamos para o sábado à noite, quando estaríamos tranquilos em casa. Idealizamos um momento intimista, de plenitude familiar! Mas no sábado pela manhã, na fila da padaria...

-Mamãe, tem um bebê na sua barriga!

Meio sem saber se aquilo era uma pergunta ou uma afirmação, tentando retomar o controle dos fatos, não pude elaborar nada melhor que a verdade. Respondi bem baixinho:

- É! Tem sim!

A reposta dela foi o sorriso mais lindo que própria manhã de sábado!

Mas a sagacidade de um menino de seis anos, aliada à emocionada empolgação, não permitiu que nenhuma preocupação com o tom de voz o assolasse.

- Você está grávida?

Metade da padaria olhou para nós. Discretamente, claro! Mas aguardavam a confirmação!

- Estou, Bê!

- Mas você fez exame?

A outra metade da padaria parou. O garoto tinha razão, precisava-se ter certeza!

- Fiz!

- O papai já sabe?

-Sabe!

A velhinha que estava na nossa frente não se conteve e nos felicitou animadamente:

-Parabéns! Que ótima notícia para começar o dia!

Só me restou informar ao marido que o momento intimista familiar havia sido substituído por uma coletiva na padaria!

A terceira barriga tem suas particularidades e encantos. Se resume à ausência de estresse. Não precisa comprar nem arrumar muita coisa. Quase tudo já está lá. Não dá tempo de passar mal, nem de pensar demais.  Existem duas criaturinhas que absorvem quase todos seus pensamentos e ações. O que há é um encanto novo. O encanto das crianças se encantando. Elas se tornam agentes ativos da gestação. Querem saber, pegar, querem ver o leite que vai sair das mamas, medem quase diariamente o tamanho da barriga. Sentem os pinotes do bebê com as mãos, com a cabeça, com o corpo, com a alma. “O bebê me chutou!” “O bebê me mordeu! Ele mordeu minha cara!” Disputam a posse da barriga, disputam com a barriga o foco da câmera fotográfica. Tornam a terceira gestação uma experiência ímpar.

E fomos navegando nas águas tranquilas até o início do terceiro trimestre balançar nosso barquinho do amor com ondas revoltas. O ultrassom mostrou uma insuficiência placentária leve, mas o bebê estava bem, se movimentando, crescendo. A princípio nada mais preocupante. Necessário apenas acompanhar o ganho de peso. Nos agarramos firmemente ao nosso barquinho e seguimos no mar da tranquilidade. Mas os ultrassons que se seguiram nos tiraram da calmaria. O ganho de peso não se mantinha satisfatório. Adentramos um mar alto, ora de brisas, ora de ventanias. Era preciso fazer repouso para melhorar o fluxo placentário. Medida pouco factível quando se mora no terceiro andar e se tem uma demanda de dois filhos em idade escolar. Com algum empenho traçamos estratégias para viabilizar minimamente a recomendação médica. Seguimos firmes, fingindo não reparar na angústia que sorrateiramente fazia o coração pulsar diferente.

Feriado de fim de ano. Todos no almoço de família, parte da estratégia “mamãe precisa descansar para o Rafa crescer”, e eu fico em casa com a barriga, o repouso, a angustia. A mente, que já há algum tempo se mantém continuamente pensando no assunto, como se tivesse tomado vida própria, aproveita o silêncio da casa e passa a me enviar pensamentos que vão sendo captados não se sabe bem pela razão ou pelo coração, ou pela dupla que finalmente entrou em consenso. Insuficiência placentária leve, para um ganho de peso muito ruim. O coraçãozinho está sempre mais acelerado. Então um letreiro luminoso se acende diante dos meus olhos: “Ecocardiograma fetal”. Crianças cardiopatas são a realidade do meu trabalho. Melhor mesmo é dar uma conferida no coração desse aqui de dentro.

Esperei passar o feriado e liguei para a pessoa que me foi indicada. “Tem uma vaga para hoje”. O ultrassom realizado pela manhã havia sido favorável, o bebê tinha ganhado um pesinho. Com a constatação de um ecocardiograma normal seria possível concluir nossa jornada retornando à rota das águas mansas. Já me imaginei dentro do táxi de volta para casa ligando para o marido: “- Amor, eco normal! Podemos ficar tranquilos!”

Mas as águas mansas haviam ficado, em definitivo, nas rotas passadas. A médica   constatou uma alteração na circulação fetal. Um ducto, muito importante  para a circulação, estava se fechando. Sem maiores repercussões nesse momento. Mas seria necessário acompanhar. De perto. Duas noites em claro depois retorno ao consultório para repetir o exame. O lado direito do coração do bebê já não funcionava bem, estava com suas dimensões aumentadas, e já começava a causar repercussões nos outros órgãos. A médica falou aquilo que eu já sabia, mas ainda não havia elaborado. “-Melhor interromper!”  Descobri  a sensação de ter o coração arrastado por um tsunami. Tentei recorrer à mente, coitada! Ela fez um enorme esforço para concatenar as ideias. O marido no plantão, a obstetra viajando. Era como estar presa em um labirinto mental, as ideias soltas teimavam em não se assentar. Então a médica ecocardiografista, que eu praticamente acabara de conhecer, agiu com a presteza de uma velha amiga. Foi calmamente capturando aquelas ideias embaralhadas e colocando cada uma no seu devido lugar. Assoprou levemente a poeira das dificuldades, oferecendo soluções práticas. Acalmou meu ânimo conturbado, me colocando em condições de tomar as providências necessárias. Embora o tempo de chorar não me tenha sido concedido, também não se fez tão necessário. Avisei ao marido da urgência em salvar o pequeno, interrompendo a gestação. Ele, que ainda precisava atender os pacientes do seu ambulatório semanal, se encaminhou para o local sem saber como dispensaria tantas pessoas que haviam demorado tanto tempo para marcar a consulta. Não precisou dispensar ninguém. Chegando ao ambulatório, não encontrou os pacientes. A secretária informou que houve um erro na central de marcações, e a agenda estava livre. Sem acreditar no que acabara de acontecer seguiu ao meu encontro. Com a ajuda da minha obstetra, que gentilmente atendeu minha ligação mesmo estando em um aeroporto do Panamá, conseguimos uma outra médica obstetra para fazer o parto ainda naquela noite. Com a ajuda de outro amigo a vaga de CTI foi obtida, já que o bebê nasceria prematuro.  Os caminhos, se abrindo de forma tão célere e precisa, nos deu a definitiva convicção de que não caminhamos a esmo por esse mundo. Foi como sentir o dedo de Deus traçando as rotas. Os profissionais envolvidos, que não eram nossos conhecidos, nos dedicaram não apenas o exercício preciso da sua especialidade. Nos foi ofertado a mais genuína solidariedade, nos fazendo experimentar na vida real o conceito de amor ao próximo.

Uma passada rápida em casa para pegar algumas coisas, e claro, avisar às crianças que o irmão nasceria ainda naquela noite. Disfarçamos a tensão e tentamos imprimir naturalidade ao tom de voz:

-Pessoal, atenção para uma notícia: O Rafa vai nascer!

Explosão de euforia é a expressão que mais se aproxima do que foi a reação dos dois. Pulavam no sofá, pulavam em cima de mim, gritavam em coro que o Rafa ia nascer! Contrastando com a cara de preocupação da minha mãe, que obviamente deduziu que algo não estava bem, a alegria genuína das crianças nos deu mais um alento de esperança de que daria tudo certo. Troquei com minha mãe mais olhares do que palavras Não estava nos meus planos nublar a alegria das crianças com qualquer sombra de preocupação.

O nascimento do Rafael se deu com inteira tranquilidade, sem maiores obstáculos ou dificuldades. Ele nasceu muito bem para quem o fazia quatro semanas antes do planejado e com um coração que não estava na plenitude das suas funções. Chorou forte, se movimentava bem, respirava... foi encaminhado ao CTI neonatal. A médica que havia feito tão precisamente seu diagnóstico, retornou ao hospital após seu nascimento para fazer o ecocardiograma pós natal. Fez questão de ir até a sala de recuperação anestésica para me dar a notícia. Era mesmo uma constrição ductal. Com o estabelecimento da circulação pulmonar após o nascimento, tudo estava bem. O coração funcionava de forma praticamente normal. Exclamei em lágrimas:

-Você salvou a vida dele!

Com um sorriso aberto de quem compartilhava sinceramente da nossa alegria, ela respondeu:

- Mas esse é o nosso trabalho! Você já fez isso quantas vezes?

Ela estava certa. São muitas as ocasiões nas quais as mães, felizes com a boa recuperação dos filhos, me dirigem palavras similares de gratidão e afeto. Pude então entender a real dimensão das lágrimas de gratidão de uma mãe.

Meu marido não continha a euforia!

-Deu tudo, tudo certo! Me deu até fome agora!

Ligou para o delivery e pediu um sanduíche de picanha.

“É, esta tudo certo!” Pensei.

Dois dias no CTI, apenas para nos  certificarmos  de que tudo estava bem. E estava. Dois dias na enfermaria para garantir mais uns cem gramas, e estamos em casa!

As roupinhas são as dos irmãos e dos primos. Havíamos planejado comprar as coisas após o natal, com mais tranquilidade. E o nosso pequeno não tem nada que seja especificamente dele. Aprendemos algo sobre o que é essencial e o que é dispensável. Vestido com o macacão que foi do irmão, e com a patente semelhança entre os dois, entrei na máquina do tempo e revivi a sensação do primeiro filho. Rafael é um novo primeiro filho. Nos trouxe vivências únicas e inesquecíveis.

Estamos indo muito bem. Às vezes a cabeça fica cheia de farofa ou com um pitoresco aroma de linguiça. O ímpeto de beijar o irmão bebê quando ele acorda é tão intenso que mal dá para terminar de engolir a comida! Todas as coisas por aqui estão salpicadas de carinho e bocejos. As noites em claro se convertem na alegria de uma boa mamada. Ainda temos a diferença de um peso para tirar!

Essa é a história do Rafael que eu escrevo. Daqui para a frente é com ele. Que seja uma história tão incrível quanto foi até aqui!

Agora não restam dúvidas!

Faltava você!