FALTAVA
VOCÊ!
Dois filhos. Um casal.
Perfeito aos olhos do mundo. Mas eu sentia que faltava alguém. Sempre
conversávamos sobre o assunto, meu marido e eu, e chegávamos à conclusão de que
estávamos velhos demais, cansados demais, sobrecarregados demais, com dinheiro
de menos. Não, outro filho não seria viável. Sempre uma decisão tomada com algum
pesar. Mas o assunto insistentemente voltava à pauta daquelas conversas
noturnas de casal. Uma mudança de casa
que não estava nos planos nos deparou com um berço, carrinhos de passeio,
cadeirinha de comer, bebê conforto. Doar? Vender? A resposta veio em uníssono:
vamos esperar mais um pouco! Esperamos. Até uma monótona quarta feira de
cinzas. Resolvi sair um pouco com as crianças e enquanto eu as observava
brincando no parque, a ideia, como uma brisa suave, me soprou novamente ao
coração. “Está faltando alguém!” Imediatamente me lembrei do mantra: “velhos
demais, cansados demais, dinheiro de menos...”
E a razão mais uma vez informou ao coração sobre a impossibilidade e levar
adiante o projeto de um “terceirinho”. O coração não ficou feliz! Mas no
carro, retornando para a casa, eis que o coração, esse insistente, ganha
aliados de peso!
- Mamãe, quando a minha
irmãzinha que está na sua barriga nascer, ela vai ficar com a minha cadeira,
não é? E eu vou ficar com a cadeira do Bê!
- Tem uma irmãzinha na
minha barriga, Lalá? – perguntei, sabendo que definitivamente não tinha ninguém
lá naquele momento.
- Tem a Juju! Juliana!
Uma terceira pessoa,
que ainda não havia se manifestado não perdeu mais tempo, e defendeu o dele:
- E se for o Rafa? Você
não sabe!
E a razão foi obrigada
a se dobrar aos apelos do coração. Afinal, crianças captando pensamentos, ou
emoções, não poderia ser classificada como coincidência pura e simples. Cheguei
em casa e atingi meu marido à queima roupa:
- A gente vai ter mais um filho!
Ele abriu apenas um dos
olhos, tentando despertar do cochilo que tirava no sofá. Conseguiu emitir
um “-É?”
- É! Já tem até nome!
Juju! Ou Rafa!
Ele ficou um tempo
olhando para o nada. Achei natural que tivesse assimilando a ideia. Preparei
mentalmente todos os argumentos possíveis para convencê-lo e aguardei a
resposta:
-Juju de quê? Só se for
de Júlia. Juliana não gosto não!
Argumentos para quê,
quando a vida segue seu curso e apenas nos mostra os caminhos a serem
trilhados! Ao contrário do pesar que me tocava quando a decisão era a oposta,
me invadiu uma alegria tão genuína, que eu não pude compreender como só agora
conseguimos enxergar o óbvio. Que as razões da razão eram tão absolutamente
pueris se comparadas à grandeza de receber o integrante que faltava. A alegria
dessa tomada decisão não pôde ser contida. Disparei mais um tiro, dessa vez no
grupo de amigas de muita afinidade. Precisava dividir com mais pessoas!
Comuniquei que havíamos decidido aumentar a família, e imediatamente as
felicitações que se seguiram equivaleram a felicitações de nascimento. Uma
delas comentou: “- Que incrível! É a primeira vez que participo da comunicação
da decisão de ter um filho!” Naquele momento pensei: “-Acho que sou meio fora
da curva!”
Iniciamos os
preparativos básicos. Ácido fólico, dieta mais saudável, projeto de viagem.
Bem, esse último não fazia parte dos preparativos, mas veio bem a calhar. Há um
ano atrás havíamos, pela primeira vez, deixado as crianças com a avó para fazer uma viagem relâmpago ao Rio e
assistir aos Rolling Stones. Decidimos que iríamos programar uma fugidinha
dessas todos os anos. Um fim de semana fora, sem crianças. Organizamos então uma ida à Ouro Preto. E como a vida segue seus
meandros sem se importar muito com os atropelos, por essa época havia quatro
felizes gestantes na minha equipe de trabalho. A chefe coçava a cabeça
preocupada com a cobertura da escala à época das licenças. Não me contive, seja
por um senso de responsabilidade, ou simplesmente porque a empolgação
transbordava do coração e tinha que sair pela boca...
- Então se prepara que
daqui a pouco serão cinco.
Olhos arregalados:
“-Você está grávida?”
“-Ainda não!” e apontei
para o calendário: “-Mas nesse fim de semana vou para Ouro Preto com meu
marido. Então a partir dessa segunda feira pode me considerar grávida!”
Evidentemente
tratava-se de uma brincadeira. O desejo de que essa fala se concretizasse era
muito grande, mas naquele momento eu jamais imaginaria que cinco semanas após
um despretensioso fim de semana em Ouro Preto eu estaria anunciando a gravidez!
Agora era contar para
as crianças. Gostaríamos que elas ficassem sabendo de uma forma especial.
Planejamos para o sábado à noite, quando estaríamos tranquilos em casa.
Idealizamos um momento intimista, de plenitude familiar! Mas no sábado pela
manhã, na fila da padaria...
-Mamãe, tem um bebê na
sua barriga!
Meio sem saber se
aquilo era uma pergunta ou uma afirmação, tentando retomar o controle dos
fatos, não pude elaborar nada melhor que a verdade. Respondi bem baixinho:
- É! Tem sim!
A reposta dela foi o
sorriso mais lindo que própria manhã de sábado!
Mas a sagacidade de um
menino de seis anos, aliada à emocionada empolgação, não permitiu que nenhuma
preocupação com o tom de voz o assolasse.
- Você está grávida?
Metade da padaria olhou
para nós. Discretamente, claro! Mas aguardavam a confirmação!
- Estou, Bê!
- Mas você fez exame?
A outra metade da
padaria parou. O garoto tinha razão, precisava-se ter certeza!
- Fiz!
- O papai já sabe?
-Sabe!
A velhinha que estava
na nossa frente não se conteve e nos felicitou animadamente:
-Parabéns! Que ótima
notícia para começar o dia!
Só me restou informar
ao marido que o momento intimista familiar havia sido substituído por uma
coletiva na padaria!
A terceira barriga tem
suas particularidades e encantos. Se resume à ausência de estresse. Não precisa
comprar nem arrumar muita coisa. Quase tudo já está lá. Não dá tempo de passar
mal, nem de pensar demais. Existem duas
criaturinhas que absorvem quase todos seus pensamentos e ações. O que há é um
encanto novo. O encanto das crianças se encantando. Elas se tornam agentes
ativos da gestação. Querem saber, pegar, querem ver o leite que vai sair das
mamas, medem quase diariamente o tamanho da barriga. Sentem os pinotes do bebê
com as mãos, com a cabeça, com o corpo, com a alma. “O bebê me chutou!” “O bebê
me mordeu! Ele mordeu minha cara!” Disputam a posse da barriga, disputam com a
barriga o foco da câmera fotográfica. Tornam a terceira gestação uma
experiência ímpar.
E fomos navegando nas
águas tranquilas até o início do terceiro trimestre balançar nosso barquinho do
amor com ondas revoltas. O ultrassom mostrou uma insuficiência placentária
leve, mas o bebê estava bem, se movimentando, crescendo. A princípio nada mais
preocupante. Necessário apenas acompanhar o ganho de peso. Nos agarramos
firmemente ao nosso barquinho e seguimos no mar da tranquilidade. Mas os
ultrassons que se seguiram nos tiraram da calmaria. O ganho de peso não se
mantinha satisfatório. Adentramos um mar alto, ora de brisas, ora de ventanias.
Era preciso fazer repouso para melhorar o fluxo placentário. Medida pouco
factível quando se mora no terceiro andar e se tem uma demanda de dois filhos
em idade escolar. Com algum empenho traçamos estratégias para viabilizar
minimamente a recomendação médica. Seguimos firmes, fingindo não reparar na
angústia que sorrateiramente fazia o coração pulsar diferente.
Feriado de fim de ano.
Todos no almoço de família, parte da estratégia “mamãe precisa descansar para o
Rafa crescer”, e eu fico em casa com a barriga, o repouso, a angustia. A mente,
que já há algum tempo se mantém continuamente pensando no assunto, como se
tivesse tomado vida própria, aproveita o silêncio da casa e passa a me enviar
pensamentos que vão sendo captados não se sabe bem pela razão ou pelo coração,
ou pela dupla que finalmente entrou em consenso. Insuficiência placentária
leve, para um ganho de peso muito ruim. O coraçãozinho está sempre mais
acelerado. Então um letreiro luminoso se acende diante dos meus olhos:
“Ecocardiograma fetal”. Crianças cardiopatas são a realidade do meu trabalho. Melhor
mesmo é dar uma conferida no coração desse aqui de dentro.
Esperei passar o
feriado e liguei para a pessoa que me foi indicada. “Tem uma vaga para hoje”. O
ultrassom realizado pela manhã havia sido favorável, o bebê tinha ganhado um
pesinho. Com a constatação de um ecocardiograma normal seria possível concluir
nossa jornada retornando à rota das águas mansas. Já me imaginei dentro do táxi
de volta para casa ligando para o marido: “- Amor, eco normal! Podemos ficar
tranquilos!”
Mas as águas mansas
haviam ficado, em definitivo, nas rotas passadas. A médica constatou uma alteração na circulação fetal. Um ducto, muito importante para a circulação, estava se fechando. Sem
maiores repercussões nesse momento. Mas seria necessário acompanhar. De perto.
Duas noites em claro depois retorno ao consultório para repetir o exame. O lado
direito do coração do bebê já não funcionava bem, estava com suas dimensões
aumentadas, e já começava a causar repercussões nos outros órgãos. A médica
falou aquilo que eu já sabia, mas ainda não havia elaborado. “-Melhor interromper!” Descobri a sensação de ter o coração arrastado por um
tsunami. Tentei recorrer à mente, coitada! Ela fez um enorme esforço para
concatenar as ideias. O marido no plantão, a obstetra viajando. Era como estar
presa em um labirinto mental, as ideias soltas teimavam em não se assentar.
Então a médica ecocardiografista, que eu praticamente acabara de conhecer, agiu
com a presteza de uma velha amiga. Foi calmamente capturando aquelas ideias
embaralhadas e colocando cada uma no seu devido lugar. Assoprou levemente a
poeira das dificuldades, oferecendo soluções práticas. Acalmou meu ânimo
conturbado, me colocando em condições de tomar as providências necessárias. Embora
o tempo de chorar não me tenha sido concedido, também não se fez tão
necessário. Avisei ao marido da urgência em salvar o pequeno, interrompendo a
gestação. Ele, que ainda precisava atender os pacientes do seu ambulatório
semanal, se encaminhou para o local sem saber como dispensaria tantas pessoas
que haviam demorado tanto tempo para marcar a consulta. Não precisou dispensar
ninguém. Chegando ao ambulatório, não encontrou os pacientes. A secretária
informou que houve um erro na central de marcações, e a agenda estava livre.
Sem acreditar no que acabara de acontecer seguiu ao meu encontro. Com a ajuda
da minha obstetra, que gentilmente atendeu minha ligação mesmo estando em um
aeroporto do Panamá, conseguimos uma outra médica obstetra para fazer o parto
ainda naquela noite. Com a ajuda de outro amigo a vaga de CTI foi obtida, já
que o bebê nasceria prematuro. Os
caminhos, se abrindo de forma tão célere e precisa, nos deu a definitiva
convicção de que não caminhamos a esmo por esse mundo. Foi como sentir o dedo
de Deus traçando as rotas. Os profissionais envolvidos, que não eram nossos
conhecidos, nos dedicaram não apenas o exercício preciso da sua especialidade.
Nos foi ofertado a mais genuína solidariedade, nos fazendo experimentar na vida
real o conceito de amor ao próximo.
Uma passada rápida em
casa para pegar algumas coisas, e claro, avisar às crianças que o irmão
nasceria ainda naquela noite. Disfarçamos a tensão e tentamos imprimir
naturalidade ao tom de voz:
-Pessoal, atenção para
uma notícia: O Rafa vai nascer!
Explosão de euforia é a
expressão que mais se aproxima do que foi a reação dos dois. Pulavam no sofá,
pulavam em cima de mim, gritavam em coro que o Rafa ia nascer! Contrastando com
a cara de preocupação da minha mãe, que obviamente deduziu que algo não estava
bem, a alegria genuína das crianças nos deu mais um alento de esperança de que
daria tudo certo. Troquei com minha mãe mais olhares do que palavras Não estava
nos meus planos nublar a alegria das crianças com qualquer sombra de
preocupação.
O nascimento do Rafael
se deu com inteira tranquilidade, sem maiores obstáculos ou dificuldades. Ele nasceu
muito bem para quem o fazia quatro semanas antes do planejado e com um coração
que não estava na plenitude das suas funções. Chorou forte, se movimentava bem,
respirava... foi encaminhado ao CTI neonatal. A médica que havia feito tão
precisamente seu diagnóstico, retornou ao hospital após seu nascimento para
fazer o ecocardiograma pós natal. Fez questão de ir até a sala de recuperação
anestésica para me dar a notícia. Era mesmo uma constrição ductal. Com o estabelecimento
da circulação pulmonar após o nascimento, tudo estava bem. O coração funcionava
de forma praticamente normal. Exclamei em lágrimas:
-Você salvou a vida
dele!
Com um sorriso aberto
de quem compartilhava sinceramente da nossa alegria, ela respondeu:
- Mas esse é o nosso
trabalho! Você já fez isso quantas vezes?
Ela estava certa. São muitas
as ocasiões nas quais as mães, felizes com a boa recuperação dos filhos, me
dirigem palavras similares de gratidão e afeto. Pude então entender a real
dimensão das lágrimas de gratidão de uma mãe.
Meu marido não continha
a euforia!
-Deu tudo, tudo certo!
Me deu até fome agora!
Ligou para o delivery e
pediu um sanduíche de picanha.
“É, esta tudo certo!”
Pensei.
Dois dias no CTI,
apenas para nos certificarmos de que tudo estava bem. E estava. Dois dias na
enfermaria para garantir mais uns cem gramas, e estamos em casa!
As roupinhas são as dos
irmãos e dos primos. Havíamos planejado comprar as coisas após o natal, com
mais tranquilidade. E o nosso pequeno não tem nada que seja especificamente
dele. Aprendemos algo sobre o que é essencial e o que é dispensável. Vestido
com o macacão que foi do irmão, e com a patente semelhança entre os dois,
entrei na máquina do tempo e revivi a sensação do primeiro filho. Rafael é um
novo primeiro filho. Nos trouxe vivências únicas e inesquecíveis.
Estamos indo muito bem.
Às vezes a cabeça fica cheia de farofa ou com um pitoresco aroma de linguiça. O
ímpeto de beijar o irmão bebê quando ele acorda é tão intenso que mal dá para
terminar de engolir a comida! Todas as coisas por aqui estão salpicadas de
carinho e bocejos. As noites em claro se convertem na alegria de uma boa
mamada. Ainda temos a diferença de um peso para tirar!
Essa é a história do
Rafael que eu escrevo. Daqui para a frente é com ele. Que seja uma história tão
incrível quanto foi até aqui!
Agora não restam
dúvidas!
Faltava você!