sexta-feira, 20 de novembro de 2020

CÉSAR

 CÉSAR

Durante toda a gestação do meu primeiro filho, entre as poucas convicções que eu tinha, estava a escolha de qual dos meus sobrenomes seria o dele. Mediante o acordo prévio de um nome curto, escolheríamos, eu e meu marido, apenas um dos nossos sobrenomes para dar aos filhos. Por algum tempo acreditei que minha escolha estava feita. Seria, claro, o sobrenome da minha mãe, como uma forma de quebrar paradigmas do patriarcado. Mas a razão, essa nobre guerreira que vive dentro de mim, vive perdendo batalhas para o persuasivo coração. Quando nasceu um menino, o primeiro neto do meu pai, o coração venceu mais uma. Não pude furtar ao meu pai a alegria de colocar seu nome de família no seu primeiro neto. César. Meu filho se chamou Bernardo César Santos. E assim por diante, foram todos os netos ganhando o sobrenome do avô, os meus filhos e os filhos da minha irmã. O que eu ainda não sabia, é que o coração havia acertado em cheio. Apenas durante a minha terceira gestação, pude ter a alegria de saber que o meu objetivo inicial havia sido alcançado com maestria! 


Bernardo, que nessa época tinha sete anos, andava muito curioso sobre seus bisavós e tataravós, perguntou ao meu pai como se chamavam seus avós. Meu pai então nos contou uma história inédita para mim.

O avó dele, meu bisavó, se chamava Martinho. Tinha um sobrenome pomposo de uma família rica da região. Mas esse sobrenome não o fazia feliz. Ele era filho de um homem que pertencia a essa família rica e importante. Mas esse homem não era o marido de sua mãe. Sua mãe, solteira, negra, era  empregada da família. Embora tenha ganhado o sobrenome, meu bisavô, Martinho, não havia ganhado o reconhecimento da família, e não se sentia parte dela. Casou-se com minha bisavó. Francisca Augusta César, descendente direta da recente escravidão. Então nasce meu avô. Primeiro filho do casal. Meu bisavô se furta a meter-lhe o sobrenome da família pela qual não tinha estima. Como seu registro pessoal para o primeiro filho, deu-lhe Martinho como segundo nome. O primeiro nome? Francisco. O sobrenome: César. Primeiro nome e sobrenome advindos de sua mãe. O filho de Francisca Augusta César e Martinho se chamou Francisco Martinho César.

Conheci apenas essa pequena parte da história da minha bisavó, Francisca. Mas sua força se fez sentir. No início do século passado, em 1905 para ser mais exata, uma mulher negra dá seu nome e sobrenome ao primeiro filho homem, como forma de suplantar o desprezo  social através do amor.

A mãe de Martinho, mulher preta de coragem, que conseguiu dar ao filho o reconhecimento paterno, ainda que formal, garantindo-lhe o conhecimento da sua origem e a opção em relegá-la, ganhou a merecida homenagem. A segunda filha de Martinho e Francisca se chamou Maria. Ganhou o nome a avó paterna, seguindo o caminho de lutas, com a força que vem intrínseca no nome. Maria!

E eis que o sobrenome escolhido para meus filhos vem representar o verdadeiro rompimento, não apenas  com o patriarcado, mas com convenções sociais cruéis e excludentes.  Meus filhos e sobrinhos carregam um sobrenome que representa a essência da resistência. A resistência anônima do cotidiano.

César. Pequeno e forte como foi a família de Francisca e Martinho.