NADAR CONTRA A MARÉ PODE SER FORTALECEDOR
Como funciona a lei na Dinamarca: a lei é criada com a participação ativa da
população. A população tem consciência da importância da lei, entende que a lei
existe por um motivo válido, seja segurança, preservação ambiental, inclusão...
dessa forma, a população não apenas cumpre a lei, como zela pelo seu
cumprimento.
“Nosso passeio
inaugural (de bicicleta) até os campos dinamarqueses começa bem, até que um
fazendeiro acena para nós do seu trator para dizer que nossos faróis não eram
do tipo certo.
... – Faróis
dianteiros certos? – pergunto, sem acreditar – É meio dia. ...
... – Não importa –
diz ele, balançando a cabeça. – Essa é a regra. ... você tem que ter faróis
dianteiros e traseiros emitindo um facho de luz intermitente para frente e para
trás... Os faróis devem ser instalados com uma pequena inclinação, para evitar
que os ciclistas e motoristas vindo no sentido contrário fiquem cegos pela luz.
E as luzes não devem... – faz um gesto com uma das mãos, apontando para a minha bicicleta – ser
frouxas.”
Trecho do livro O Segredo da Dinamarca, de Hellen Russell
Como funciona a lei nos Estados
Unidos: a lei é criada pelo legislativo, o Estado executa bem o seu papel de fiscalizar
e assegurar o cumprimento da lei. Os norte-americanos cumprem a lei, ainda que
pelo receio da punição.
“- Você tem que se sentar na cadeirinha, senão eu posso ser presa”
Trecho do filme Pecados Íntimos, quando Sarah, personagem de Kate Winslet,
tenta convencer a filha a se acomodar no assento de segurança do carro.
Como funciona a lei no Brasil: a
lei é criada pelo legislativo. O Estado não executa o seu papel de assegurar o cumprimento da lei.
Com a certeza da impunidade, pessoas físicas e
instituições, principalmente as mais fortes do ponto de vista
mercadológico, descumprem reiteradamente
a lei.
O cidadão comum, incomodado com o não cumprimento de uma lei que ele
considera importante, vai até o promotor e diz:
“ – Sr Promotor, pude verificar que esta lei está, há alguns anos,
sendo infringida. Aqui estão algumas evidências”
O cidadão escuta, estarrecido, a resposta do promotor:
“ – Essa lei... eu até concordo com ela, mas difícil vai ser convencer
o juiz de que ela é importante...”
Trecho da vida real de três brasileiras que ainda acreditam que
pequenas atitudes podem melhorar esse pobre e perdido país chamado Brasil.
Trata-se da lei que proíbe que as
escolas apliquem testes de seleção para o ingresso no ensino fundamental, os
famosos “vestibulinhos”. Considero que essa é uma das leis do país que se
encontra mais bem fundamentada, levando em conta pareceres de diversos especialistas da área de
educação, psicologia e saúde. Na sua essência, essa resolução não abrange
apenas o acesso ao ensino fundamental, que deve é claro, ser universal. Mas é
uma lei que visa proteger a educação infantil.
Segundo os especialistas, a
função da educação infantil não é a aplicação de um conteúdo programático, como
alfabetização, por exemplo. Segundo resolução do MEC, a criança deve iniciar o
processo de alfabetização aos sete anos, e esse processo deve estar concluído
ao final do primeiro ciclo do ensino fundamental, ou seja, o terceiro ano. A
educação infantil é o primeiro contato da criança com o mundo. Antigamente,
isso era feito no quintal de casa com os irmãos, ou na rua com a vizinhança.
Com as mudanças estruturais na sociedade e conseqüentemente no estilo de vida,
a “escolinha” passou a ser um elemento de suma importância na vida das
famílias, e deveria reproduzir esse ambiente do coletivo, no qual a criança
começa a perceber o mundo e se relacionar com ele. O que ela precisa é de
apreender conceitos que irão possibilitá-la de transitar no mundo, como
consciência de si mesma, de coletividade,
relações interpessoais e com o ambiente. Conceitos básicos de cidadania e
respeito. E a criança apreende esses conceitos através do lúdico, ou seja,
brincando. Esse tempo tão precioso, não
pode ser roubado para que ocorra uma antecipação da alfabetização. Roubar esse
tempo da criança apenas produz adultos desadaptados no mundo, sem noção de coletivo,
com menor capacidade produtiva. E em um país com tantas leis inúteis, temos uma
lei tão coerente e necessária. Na qual o juiz não acredita.
Todas essas coisas, e algumas
outras, foram ditas ao promotor, por mim e por mais duas mulheres que também acreditam
que podemos fazer um país melhor para todos. Ele nos escutou mui gentilmente,
embora não se tenha mostrado muito animado em levantar essa bandeira. Tentou
encerrar a conversa dizendo que quem se sentisse pessoalmente lesada poderia
mover uma ação cível ou fazer uma denúncia diretamente no Conselho Estadual de
Educação. Nesse momento, essas mulheres o informaram que ninguém ali se sentia
pessoalmente lesada, que nossos filhos não passaram por esse processo de
seleção porque nós optamos por uma escola cuja filosofia vai ao encontro da
nossa. Não é preciso ter um leitor de pensamentos para concluir e o promotor
deve ter pensado: ‘_ o que essas três malucas fazem aqui em uma sexta a tarde
se elas próprias não foram lesadas?’
Bem, as três malucas apenas
pretendem viver em um país mais humano e inclusivo. E mesmo que o promotor não
tenha perguntado, dissemos isso a ele. Não sabemos ao certo qual foi o impacto
disso, mas ele se comprometeu a estudar melhor o assunto e talvez incluir essa
pauta em um outro processo em andamento.
As três malucas saíram da Vara de
Infância e Juventude bastante desanimadas em viver em um país no qual o juiz
tem que ser convencido da importância de uma lei tão bem fundamentada. Às vezes
dá vontade de desistir do Brasil. Mas essa vontade logo é substituída por um
desejo ainda maior de lutar.