domingo, 12 de fevereiro de 2017

NADAR CONTRA A MARÉ PODE SER FORTALECEDOR

NADAR CONTRA A MARÉ  PODE SER FORTALECEDOR

Como funciona a lei na Dinamarca:  a lei é criada com a participação ativa da população. A população tem consciência da importância da lei, entende que a lei existe por um motivo válido, seja segurança, preservação ambiental, inclusão... dessa forma, a população não apenas cumpre a lei, como zela pelo seu cumprimento.

“Nosso passeio inaugural (de bicicleta) até os campos dinamarqueses começa bem, até que um fazendeiro acena para nós do seu trator para dizer que nossos faróis não eram do tipo certo.
... – Faróis dianteiros certos? – pergunto, sem acreditar – É meio dia. ...
... – Não importa – diz ele, balançando a cabeça. – Essa é a regra. ... você tem que ter faróis dianteiros e traseiros emitindo um facho de luz intermitente para frente e para trás... Os faróis devem ser instalados com uma pequena inclinação, para evitar que os ciclistas e motoristas vindo no sentido contrário fiquem cegos pela luz. E as luzes não devem... – faz um gesto com uma das mãos,  apontando para a minha bicicleta – ser frouxas.”
Trecho do livro O Segredo da Dinamarca, de Hellen Russell

Como funciona a lei nos Estados Unidos: a lei é criada pelo legislativo,  o Estado executa bem o seu papel de fiscalizar e assegurar o cumprimento da lei. Os norte-americanos cumprem a lei, ainda que pelo receio da punição.

“- Você tem que se sentar na cadeirinha, senão eu posso ser presa”
Trecho do filme Pecados Íntimos, quando Sarah, personagem de Kate Winslet, tenta convencer a filha a se acomodar no assento de segurança do carro.

Como funciona a lei no Brasil: a lei é criada pelo legislativo. O Estado não executa o  seu papel de assegurar o cumprimento da lei. Com a certeza da impunidade, pessoas físicas e  instituições, principalmente as mais fortes do ponto de vista mercadológico, descumprem  reiteradamente a lei.

O cidadão comum, incomodado com o não cumprimento de uma lei que ele considera importante, vai até o promotor e diz:
“ – Sr Promotor, pude verificar que esta lei está, há alguns anos, sendo infringida. Aqui estão algumas evidências”
O cidadão escuta, estarrecido, a resposta do promotor:
“ – Essa lei... eu até concordo com ela, mas difícil vai ser convencer o juiz de que ela é importante...”
Trecho da vida real de três brasileiras que ainda acreditam que pequenas atitudes podem melhorar esse pobre e perdido país chamado Brasil.


Trata-se da lei que proíbe que as escolas apliquem testes de seleção para o ingresso no ensino fundamental, os famosos “vestibulinhos”. Considero que essa é uma das leis do país que se encontra mais bem fundamentada, levando em conta  pareceres de diversos especialistas da área de educação, psicologia e saúde. Na sua essência, essa resolução não abrange apenas o acesso ao ensino fundamental, que deve é claro, ser universal. Mas é uma lei que visa proteger a educação infantil.

Segundo os especialistas, a função da educação infantil não é a aplicação de um conteúdo programático, como alfabetização, por exemplo. Segundo resolução do MEC, a criança deve iniciar o processo de alfabetização aos sete anos, e esse processo deve estar concluído ao final do primeiro ciclo do ensino fundamental, ou seja, o terceiro ano. A educação infantil é o primeiro contato da criança com o mundo. Antigamente, isso era feito no quintal de casa com os irmãos, ou na rua com a vizinhança. Com as mudanças estruturais na sociedade e conseqüentemente no estilo de vida, a “escolinha” passou a ser um elemento de suma importância na vida das famílias, e deveria reproduzir esse ambiente do coletivo, no qual a criança começa a perceber o mundo e se relacionar com ele. O que ela precisa é de apreender conceitos que irão possibilitá-la de transitar no mundo, como consciência de  si mesma, de coletividade, relações interpessoais e com o ambiente. Conceitos básicos de cidadania e respeito. E a criança apreende esses conceitos através do lúdico, ou seja, brincando.  Esse tempo tão precioso, não pode ser roubado para que ocorra uma antecipação da alfabetização. Roubar esse tempo da criança apenas produz adultos desadaptados no mundo, sem noção de coletivo, com menor capacidade produtiva. E em um país com tantas leis inúteis, temos uma lei tão coerente e necessária. Na qual o juiz não acredita.

Todas essas coisas, e algumas outras, foram ditas ao promotor, por mim e por mais duas mulheres que também acreditam que podemos fazer um país melhor para todos. Ele nos escutou mui gentilmente, embora não se tenha mostrado muito animado em levantar essa bandeira. Tentou encerrar a conversa dizendo que quem se sentisse pessoalmente lesada poderia mover uma ação cível ou fazer uma denúncia diretamente no Conselho Estadual de Educação. Nesse momento, essas mulheres o informaram que ninguém ali se sentia pessoalmente lesada, que nossos filhos não passaram por esse processo de seleção porque nós optamos por uma escola cuja filosofia vai ao encontro da nossa. Não é preciso ter um leitor de pensamentos para concluir e o promotor deve ter pensado: ‘_ o que essas três malucas fazem aqui em uma sexta a tarde se elas próprias não foram lesadas?’

Bem, as três malucas apenas pretendem viver em um país mais humano e inclusivo. E mesmo que o promotor não tenha perguntado, dissemos isso a ele. Não sabemos ao certo qual foi o impacto disso, mas ele se comprometeu a estudar melhor o assunto e talvez incluir essa pauta em um outro processo em andamento.


As três malucas saíram da Vara de Infância e Juventude bastante desanimadas em viver em um país no qual o juiz tem que ser convencido da importância de uma lei tão bem fundamentada. Às vezes dá vontade de desistir do Brasil. Mas essa vontade logo é substituída por um desejo ainda maior de lutar.