quarta-feira, 22 de novembro de 2017

O LADO BOM DA INFÂNCIA DIGITAL

O LADO BOM DA INFÂNCIA DIGITAL

Observo que muitos reclamam dos grupos de pais das redes sociais. Minha experiência porém é muito positiva, e foi através de um apontamento em um grupo de pais de crianças de 4 anos que tivemos a oportunidade de travar uma discussão muito importante sobre crianças e mídia digital.

A questão era sobre as ciladas de vídeos do You Tube, já que muitos têm formato infantil mas versam sobre conteúdos absolutamente impróprios. Algumas mães, muito alarmadas, não sem razão, optaram por subtrair o aplicativo ao acesso das crianças. Eu já havia identificado esse problema e compartilhei com o grupo minha experiência a respeito. Acredito que privar a criança do acesso digital não é uma medida das mais adequadas. A mídia digital faz parte da vida das crianças dessa geração. Privá-las disso nos nossos  dias equivale a não matricular a criança na escola para que ela não venha a contrair as doenças próprias da infância. Assim como a escola, acredito que os benefícios oferecidos pelos canais da web superam  muito os riscos. Respeitado o tempo de tela preconizado pela OMS, que consiste em 2 horas diárias, a mídia digital deve ser explorada no seu lado bom.

O grande desafio é como fazer. Como garantir um conteúdo adequado aos filhos. O primeiro grande passo é a supervisão ativa. A mesma supervisão ativa que é a medida de maior impacto na prevenção dos acidentes domésticos na infância, é também o primeiro grande passo para a proteção digital. E isso significa assistir o conteúdo junto com a criança. Conhecer o conteúdo para explorar junto. Isso tem uma implicação prática. Liberar o tablet ou o celular para a criança e tirar uma soneca está fora de cogitação. Equivale a deixar as crianças brincando na piscina e partir para o cochilo. Risco na certa.

Conhecendo-se os conteúdos, partimos para o segundo passo. Vou chamá-lo de “conscientização digital”.

Assistindo o vídeo junto com a criança, eu a informo se  esse conteúdo é ou não adequado para ela. Se não for, ele  entra na lista dos “vídeos proibidos”. Proibidos? Mas a conscientização passa pela proibição? Creio que nessa idade sim. A conscientização vai se concretizando à medida que a criança vai acumulando vivências. Enquanto esse processo ocorre, é importante protegê-las.  Mas a criança é informada sobre o motivo da proibição. E caso ela seja flagrada assistindo um “vídeo proibido”, perde seu direito ao tempo de tela até o dia seguinte.

E quais seriam esses “vídeos proibidos”? As tais ciladas são uma realidade. Existe um canal que exibe personagens infantis no formato de massinha, que é aparentemente inofensivo. Porém, ao assistir com atenção, nos deparamos com super-heróis levantado os vestidos das princesas, fazendo xixi na banheira onde a princesa toma banho, entre outras situações de erotização. Além disso, observamos super-heróis se digladiando, com sangue espirrando para todos os lados, e situações de desonestidade tratadas como engraçadas e permitidas. Nem precisa dizer que esse canal lidera o ranking dos vídeos proibidos. A criança foi informada sobre o motivo da proibição em uma linguagem que ela possa entender. Violência é uma palavra que eles já entendem bem. E demarcamos: nesse vídeo há violência. Com os palavrões funciona da mesma forma. Quanto às situações de erotização e desonestidade, falamos sobre respeito. Não é legal levantar a saia da amiga, nem fazer xixi no amigo.  Não é legal enganar o amigo.

Outra classe de canais incluídos na lista negra são os que incentivam o consumismo. Crianças abrindo brinquedos em parceria com os pais, geralmente o pai. Esse foi mais difícil explicar o motivo da proibição, mas introduzi o assunto “consumismo”, e conversamos sobre como um excesso de brinquedos acaba atrapalhado a criatividade e dificultando a organização da casa. Que o melhor é não consumir além do necessário.  Como tenho também um filho de 7 anos aproveitei para falar da questão da exploração do trabalho infantil. Expliquei que os pais daquelas crianças ganham dinheiro explorando a imagem delas, e isso não é certo. Informei inclusive que já existem promotores de justiça de olho nisso, e já trabalham para fazer uma regulamentação baseada na lei, assim como ocorre com o trabalho dos atores mirins. E lá se foram esses canais para a lista proibida, não sem um narizinho torcido.

Temos ainda os famigerados realities shows. Pais e mães de família que expõem a intimidade do cotidiano familiar, com a intenção de faturar ou simplesmente aparecer, incrivelmente atraem atenção das crianças. É claro que alguns desses indivíduos são muito divertidos, descolados, transformam coisas triviais em engraçadas, e dá-lhe vídeos das refeições familiares, da hora de dormir, da troca de fraldas do bebê, da arrumação da casa, e por aí vai. Quando isso foi listado como proibido, as caras de interrogação receberam uma resposta a queima roupa: “esse conteúdo é burro.”  Como assim, burro? Expliquei que é um conteúdo que não tem sentido, não ensina nada, não traz nada de bom, e aproveitei para  reforçar a questão da exposição das crianças.

E com os vídeos devidamente classificados pelo crivo materno, ficamos à vontade e felizes para explorar o que a internet tem de bom! Descobrimos muita música boa, resgatamos figuras como Michael Jackson, Fred Mercury, Bob Marley, Raul Seixas. Descobrimos o George Erza. Revivemos a Tropicália com Caetano e Gil. Nos divertimos com youtubers que contam histórias  engraçadas com animação gráfica. Até tutoriais sobre jogos digitais de estratégias, Clash Royale é um bom exemplo, conseguimos selecionar como positivo e interessante.

O resultado dessa saga lendária é gratificante e surpreendente. Meu filho de 7 anos já me informa que o you tuber X entrou para a lista dos vídeos proibidos devido ao excesso de palavrões no vocabulário. Outro dia eu perguntei para ele: “você já viu que a nova TV tem a opção de um You Tube Kids?” ele respondeu: “Já, mas eu não gosto.” “Por que?” “Porque o conteúdo é burro”.

Fechou. Conscientização digital para a vida!









quinta-feira, 17 de agosto de 2017

CONFISSÕES DE UMA FEIA

CONFISSÕES DE UMA FEIA

Há muito não escutava Chico Buarque e bateu aquela nostalgia. Mas é impossível ouvir Chico sempre com os mesmos ouvidos. E viajando na intrincada trama das letras, um verso tocou meu espírito de forma inédita. Esse verso ficou martelando na minha mente. Nunca havia notado quão incrível ele era. Falo da “moça feia” que “debruçou na janela, pensando que banda tocava pra ela”. Tamanha a minha súbita identidade com essa imagem, não pude resistir em postar em rede social a seguinte frase: “Eu sou a moça feia que debruçou na janela pensando que banda tocava pra ela.” As reações foram as mais surpreendentes. Amigos se apressando em me alertar que a feiura não seria um atributo a mim pertencente. Minha mãe me exaltou como a mais bela entre as belas! Amigas mandaram mensagem inbox perguntando se estava tudo bem! É claro que me alegrei com essas reações, mas confesso que a feiura que há em mim me contenta mais.

Ser feia exige atitude. Ser feia significa mandar às favas todas as convenções sociais relativas à forma e padrões. Essa feia sou eu. Não faço botox nem preenchimentos. As rugas contam minha história. Deixo os cabelos brancos esvoaçarem a vontade. Não vou aderir à dieta low carb. Endorfina precisa de carbohidratos, e eu a quero circulando em abundância.

Mais do que um lampejo da beleza dos vinte anos, a vida me concedeu bens muitíssimo preciosos. A liberdade de ser quem eu sou. A sabedoria de romper com convenções em nome da minha felicidade. A coragem de não aderir a padrões pré-fabricados. Não vou pedir licença para envelhecer. Vou ser a velhinha grisalha e gordinha que vai rir alto chapada no buteco.

E vou me debruçar na janela tantas quantas forem as bandas que passarem. Elas tocam para mim. Me tocou sobretudo isso! A autoestima inabalável da moça feia. A banda toca sim, para ela. O mundo é dela. O mundo é das feias.

terça-feira, 30 de maio de 2017

O MAL SAIU DA SOMBRA. E ISSO É BOM

O MAL SAIU DA SOMBRA.
E ISSO É BOM!

Há quase vinte anos circulo pela área hospitalar aqui de Belo Horizonte. Seja de carro ou caminhando, percorrer esse pedacinho da cidade já faz parte do meu cotidiano. Porém, nos últimos tempos, um fato me tem chamado a atenção. Uma coisa diferente. Uma mudança! Ultimamente tenho reparado que os carros têm respeitado a faixa de pedestres. Respeitado de forma cidadã e paciente. Todos os transeuntes atravessam calmamente a faixa, sem se afobar em correrias, enquanto os motoristas aguardam pacientemente que isso ocorra, sem se arvorar acelerando ameaçadoramente. Observei isso em uma ocasião. Em outra. Hoje enquanto apreciava um café em uma mesinha na calçada entre um plantão e outro, no início da manhã quando todos precisam chegar, constatei que esse comportamento havia se tornado uma feliz realidade! Pelo menos nesse nicho. Meu coração se alegrou em constatar essa mudança. Pelo menos na região dos hospitais, onde as pessoas chegam para executar o trabalho de cuidar do outro, onde outros se encaminham para receber esses cuidados, a humanidade cidadã conseguiu finalmente se instalar. E instalou-se uma pulga pululante bem atrás das minhas orelhas. Em um momento no qual  tantas atrocidades se revelam, as pessoas estariam se tornando melhores? Sim. As pessoas estão se tornando melhores, e o mundo está a se melhorar. Exatamente por isso as atrocidades se revelam.

Na minha infância, eu escutava piadas de cunho racista e homofóbico, por parte mesmo dos meus familiares, como se isso fosse algo absolutamente natural. O racismo não existia. Todo mundo tinha um amigo negro muito querido, que era chamado de “Tição”, “Alemão” ou “Pelé”. “O Pelé é preto, mas é muito honesto!” Esse amigo até freqüentava a casa dos brancos. Entrava pelos fundos e comia na cozinha. Mas obviamente não tomava parte nos eventos sociais, onde invariavelmente, as piadinhas eram proferidas. O Brasil não era um país racista, mas os filhos dos Alemãos, Tiçãos e Pelés, não freqüentavam as mesmas escolas dos filhos do alcunhadores piadistas. O próprio Pelé, o original, aquele de Três Corações, perdeu a oportunidade de levantar a bandeira da igualdade, quando certa vez questionado sobre uma questão racial se esquivou com a seguinte resposta: “eu não tenho cor”. Quando um negro era visto dirigindo um carro de melhor envergadura, a sentença era certa:  “ou é motorista ou é jogador de futebol”. Dessa forma, o mal ficava lá, na sombra da subjugação. Mas quando os negros saem do local onde nunca deveriam ter permanecido tanto tempo, o mal sai da sombra. Inadimissível! Negros na faculdade? No aeroporto? Dirigindo um carro melhor que o meu? Que abuso! E o ódio começa a ser destilado. À luz do dia!

Assim como à luz do dia, executam-se homossexuais e transgêneros. Antigamente, isso não era absolutamente necessário. Estavam todos guardadinhos nos armários, amargando na solidão sua incongruência social. E o mal permanecia na sombra do preconceito. Mas a perdição chegou ao mundo e casais homoafetivos circulam alegremente de mãos dadas. Se casam! Adotam crianças! Transexuais conquistam o direito de serem tratados pelo nome social. Deixam de ser aberrações. Invadem o mundo conservador e sombrio. E o preconceito sai da sombra, mostra sua cara horrenda, coloca-a na mira para que balões coloridos, alçados ao céu durante um festejo de carnaval, possam atingi-la com o golpe do desprezo. Um balão para cada crime de homofobia registrado no Brasil no último ano. Trezentos balões sobem soberanos.  Milhares de vozes, que não mais serão caladas, cantam o brilho da liberdade.

E quando o ódio machista explode... quando um apresentador de TV recebe uma representação da Procuradoria Parlementar devido à apologia pública ao estrupro e misoginismo, e sua reação é rasgar o documento e esfregá-lo na sua genitália... é porque nada mais resta ao mal, senão sair da sombra e explodir em ódio. Porque já não pode mais subjugar, condenar ou humilhar.


Quando o mal é expulso do aconchego da hipocrisia e é obrigado a mostrar sua cara à luz do dia, é um bom sinal. Sinal de que o mundo melhora. O mal às claras é mais eficazmente combatido. Ele reluta, recalcitra, urra sua ira aos quatros ventos. Inutilmente. Não há mais lugar para ele no mundo. Permanecerá esperneando e fazendo alarde, até que, exaurido, tombará aniquilado.

quinta-feira, 2 de março de 2017

CRÔNICAS CARNAVALESCAS

CRÔNICAS CARNAVALESCAS
Uma degustação do que foi o Carnaval em BH nesse  ano de  2017

Carnajazz, Carnareaggie, Carnarock. Teve Clube da Esquina, teve Beiço do Wando, teve samba e axé. Teve FORA TEMER, que a Rede Globo tentou inutilmente esconder!
Teve Carnaval do povo, da inclusão,  para todos os gostos, todas as idades, todas as tribos! Carnaval da Cultura, que é nossa, e governo algum há de roubar!
Seguem algumas considerações do que eu pude presenciar!
Ano que vem tem mais!

SÁBADO, 25/02

GENTE É PRA BRILHAR!
Adoro esse slogan do Então,  Brilha!
O bloco fez jus à ele, e homenageou os 340 braseiros assassinados no ano passado vítimas de LGBTfobia.  340 balões ganharam imensidão,  e assim como nossos companheiros assassinados, foram colorir o céu! O Brasil carrega um triste recorde, e continua sendo o país no qual a comunidade LGBT mais sofre violência.
No decorrer do percurso, as frases: "com licença" e "pode passar" eram ouvidas com frequência. As pessoas se desculpavam por eventuais esbarrões, apesar de ser impossível não esbarrar em ninguém naquele mar de gente feliz! A tradicional e incômoda chuva de cerveja foi substituída pela chuva de purpurina!
Não presenciei nenhuma cena de assédio, violência ou qualquer tipo de desrespeito.
E é claro que não faltaram os gritos, faixas, arcos e até brincos de FORA TEMER!
Guarde seu preconceito no armário e vem pro Carnaval de BH!

DOMINGO, 26/02

TODO MUNDO COUBE NO BLOCO
O Carnaval de Belo Horizonte não apenas voltou com tudo, como vem mudando o conceito do carnaval de rua. BH tem conseguido politizar o carnaval,  colocar a cidade para pular e pensar! 
Idealizado pelo artista plástico e escritor Marcelo Xavier,  o bloco Todo Mundo Cabe no Mundo encantou. A diversidade saltava aos olhos.  Representação real do que é a cidade, do que é o mundo. Bebês nos carrinhos, vovôs na bateria. Todas as idades se fizeram presentes. Uma verdadeira confluência de gerações, sem choque, com o objetivo comum de ocupar o espaço da cidade e fazer representar nossa cultura, nossa gente.
Crianças e adultos  pulavam e cantavam,  no chão ou nas suas cadeiras adaptadas.  Não importa qual o grau da deficiência, todos abriram suas asas e voaram. 
O bloco não teve cordas. Integrantes da bateria perfeitamente integrados com foliões, que se sentiram a vontade para se utilizar das percussões trazidas de casa.
A forte chuva, longe de atrapalhar, deixou a festa mais charmosa. 
As falhas do carro de som foram perfeitamente contornadas pelos próprios foliões, que seguraram no gogó letra e música, incentivados pelas puxadoras, que por sinal, foram um show a parte.
Marcelo Xavier mostra  que viver num  mundo de inclusão é possível.  Necessário apenas se despir do preconceito.
"Pés, para que os quero,  se tenho asas para voar?" 
Bem disse Frida Kahlo, que por sinal estava lá representada!

SEGUNDA, 27/02

Estou em lua de mel com o Carnaval de BH. Show de cidadania e inclusão.
Carnaval nascido no seio do povo, independente do poder público, livre do monopólio dos patrocínios. Belo Horizonte conseguiu politizar o Carnaval e criar um novo conceito de carnaval de rua. A população toma posse do espaço que é seu, e o faz com consciência e cidadania! 
Hoje foi dia de curtir com as crianças no Bailinho do Distrital, no Mercado Distrital do Cruzeiro. E mesmo no evento privado e diversidade se fez presente, inclusive na programação.  O grupo TRUPE DE GAIA  empolgou pais e filhos com a Cultura Afro representada no estilo circense. Nada menos que sensacional! 
 Infelizmente a minha companheira de folia  Cíntia Guimarães não estava lá presente para nos deliciar com seus registros fotográficos,  e eu fracassei nessa missão, já que não fui capaz de olhar as  crianças,  curtir o baile e além de tudo fotografar!

E amanhã tem MAGNÓLIA! Com registro fotográfico garantido!

TERÇA, 28/02

Bloco Magnólia levou o Jazz para o Carnaval!
Com as duas pistas da Avenida Pedro II ocupada por foliões,  o bloco deu show de Jazz e organização! Fechou com chave preta e laranja o Carnaval da cidade!


domingo, 12 de fevereiro de 2017

NADAR CONTRA A MARÉ PODE SER FORTALECEDOR

NADAR CONTRA A MARÉ  PODE SER FORTALECEDOR

Como funciona a lei na Dinamarca:  a lei é criada com a participação ativa da população. A população tem consciência da importância da lei, entende que a lei existe por um motivo válido, seja segurança, preservação ambiental, inclusão... dessa forma, a população não apenas cumpre a lei, como zela pelo seu cumprimento.

“Nosso passeio inaugural (de bicicleta) até os campos dinamarqueses começa bem, até que um fazendeiro acena para nós do seu trator para dizer que nossos faróis não eram do tipo certo.
... – Faróis dianteiros certos? – pergunto, sem acreditar – É meio dia. ...
... – Não importa – diz ele, balançando a cabeça. – Essa é a regra. ... você tem que ter faróis dianteiros e traseiros emitindo um facho de luz intermitente para frente e para trás... Os faróis devem ser instalados com uma pequena inclinação, para evitar que os ciclistas e motoristas vindo no sentido contrário fiquem cegos pela luz. E as luzes não devem... – faz um gesto com uma das mãos,  apontando para a minha bicicleta – ser frouxas.”
Trecho do livro O Segredo da Dinamarca, de Hellen Russell

Como funciona a lei nos Estados Unidos: a lei é criada pelo legislativo,  o Estado executa bem o seu papel de fiscalizar e assegurar o cumprimento da lei. Os norte-americanos cumprem a lei, ainda que pelo receio da punição.

“- Você tem que se sentar na cadeirinha, senão eu posso ser presa”
Trecho do filme Pecados Íntimos, quando Sarah, personagem de Kate Winslet, tenta convencer a filha a se acomodar no assento de segurança do carro.

Como funciona a lei no Brasil: a lei é criada pelo legislativo. O Estado não executa o  seu papel de assegurar o cumprimento da lei. Com a certeza da impunidade, pessoas físicas e  instituições, principalmente as mais fortes do ponto de vista mercadológico, descumprem  reiteradamente a lei.

O cidadão comum, incomodado com o não cumprimento de uma lei que ele considera importante, vai até o promotor e diz:
“ – Sr Promotor, pude verificar que esta lei está, há alguns anos, sendo infringida. Aqui estão algumas evidências”
O cidadão escuta, estarrecido, a resposta do promotor:
“ – Essa lei... eu até concordo com ela, mas difícil vai ser convencer o juiz de que ela é importante...”
Trecho da vida real de três brasileiras que ainda acreditam que pequenas atitudes podem melhorar esse pobre e perdido país chamado Brasil.


Trata-se da lei que proíbe que as escolas apliquem testes de seleção para o ingresso no ensino fundamental, os famosos “vestibulinhos”. Considero que essa é uma das leis do país que se encontra mais bem fundamentada, levando em conta  pareceres de diversos especialistas da área de educação, psicologia e saúde. Na sua essência, essa resolução não abrange apenas o acesso ao ensino fundamental, que deve é claro, ser universal. Mas é uma lei que visa proteger a educação infantil.

Segundo os especialistas, a função da educação infantil não é a aplicação de um conteúdo programático, como alfabetização, por exemplo. Segundo resolução do MEC, a criança deve iniciar o processo de alfabetização aos sete anos, e esse processo deve estar concluído ao final do primeiro ciclo do ensino fundamental, ou seja, o terceiro ano. A educação infantil é o primeiro contato da criança com o mundo. Antigamente, isso era feito no quintal de casa com os irmãos, ou na rua com a vizinhança. Com as mudanças estruturais na sociedade e conseqüentemente no estilo de vida, a “escolinha” passou a ser um elemento de suma importância na vida das famílias, e deveria reproduzir esse ambiente do coletivo, no qual a criança começa a perceber o mundo e se relacionar com ele. O que ela precisa é de apreender conceitos que irão possibilitá-la de transitar no mundo, como consciência de  si mesma, de coletividade, relações interpessoais e com o ambiente. Conceitos básicos de cidadania e respeito. E a criança apreende esses conceitos através do lúdico, ou seja, brincando.  Esse tempo tão precioso, não pode ser roubado para que ocorra uma antecipação da alfabetização. Roubar esse tempo da criança apenas produz adultos desadaptados no mundo, sem noção de coletivo, com menor capacidade produtiva. E em um país com tantas leis inúteis, temos uma lei tão coerente e necessária. Na qual o juiz não acredita.

Todas essas coisas, e algumas outras, foram ditas ao promotor, por mim e por mais duas mulheres que também acreditam que podemos fazer um país melhor para todos. Ele nos escutou mui gentilmente, embora não se tenha mostrado muito animado em levantar essa bandeira. Tentou encerrar a conversa dizendo que quem se sentisse pessoalmente lesada poderia mover uma ação cível ou fazer uma denúncia diretamente no Conselho Estadual de Educação. Nesse momento, essas mulheres o informaram que ninguém ali se sentia pessoalmente lesada, que nossos filhos não passaram por esse processo de seleção porque nós optamos por uma escola cuja filosofia vai ao encontro da nossa. Não é preciso ter um leitor de pensamentos para concluir e o promotor deve ter pensado: ‘_ o que essas três malucas fazem aqui em uma sexta a tarde se elas próprias não foram lesadas?’

Bem, as três malucas apenas pretendem viver em um país mais humano e inclusivo. E mesmo que o promotor não tenha perguntado, dissemos isso a ele. Não sabemos ao certo qual foi o impacto disso, mas ele se comprometeu a estudar melhor o assunto e talvez incluir essa pauta em um outro processo em andamento.


As três malucas saíram da Vara de Infância e Juventude bastante desanimadas em viver em um país no qual o juiz tem que ser convencido da importância de uma lei tão bem fundamentada. Às vezes dá vontade de desistir do Brasil. Mas essa vontade logo é substituída por um desejo ainda maior de lutar.