UM
TEMPO QUE INSISTE EM NÃO PASSAR
“- Negro não é gente
- disse ela (Luzia Silva)
Todos os olhares se
voltaram para a moça. ... O Dr Winter tirou os óculos e começou a limpá-los lentamente
com o lenço.
-Mein liebes Fraülein!
– exclamou ele com sua voz aflautada – o que acaba de dizer é uma inverdade
científica.
Luzia encolheu os
ombros e seus dedos brincaram com o leque.
-Não sei se o que disse
é científico ou não mas é o que sinto.
O juíz fechou os olhos, como para não se
deixar influenciar por aquelas ideias, franziu os lábios reflexivamente e
quedou-se a procurar um ponto de conciliação. Bibiana ficou mais tesa ainda na
cadeira, como cobra pronta a dar o bote. “-Então é isso que essas moças
aprendem nos colégios da corte?” ...
- Mein liebes Fraülen! Repetiu
o Dr Winter – como pode minha graciosa amiga conciliar seu cristianismo com
essas ideias?”
Essa
cena, extraída do livro O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, se passa no ano
de 1853, na reunião de noivado de Luzia Silva e Bolívar Terra Cambará. Ao mesmo
tempo ocorria, na praça em frente ao
sobrado, a execução de um negro que
supostamente havia cometido um crime. Nessa mesma reunião discutia-se a breve chegada do lampião elétrico e da estrada de ferro em
Santa Fé.
Se
pensarmos na evolução tecnológica nesses quase 170 anos decorridos desde então,
poderíamos quase afirmar que nossos antepassados do século XIX viviam em uma
época das cavernas cibernética. Viviam sem eletricidade, se locomoviam em veículos
de tração animal, o sistema de correios era moroso e ineficiente, o que dificultava
a comunicação mesmo entre vilarejos próximos. A chegada dessas inovações chegou
a incomodar os habitantes locais mais antigos, que acreditavam tratar-se da
perdição dos tempos. Mas se pensarmos na evolução do sentimento humano,
chegamos à triste conclusão de que, se o vento da tecnologia cumpriu seu papel,
o tempo do nosso crescimento moral praticamente não passou.
Assim
como o escravo executado sem provas cabais, os negros hoje no Brasil são condenados
diariamente à morte, sob os olhares atentos de uma plateia sedenta de sangue e
exalando ódio. Quando digo hoje, não me refiro apenas ao tempo presente. No dia
de hoje, quantos negros terão sido executados na intervenção federal nas favelas
cariocas? Os negros são a maioria da população carcerária, embora não saibamos
a proporção de negros que lá se encontram sem cometer crime algum, com sua pena
imputada apenas baseada nas palavras de pessoa como Luzia Silva.
Seguindo
a linha do tempo que com tanta maestria nos traça Érico Veríssimo, chegamos ao
ano de 1884, quando Licurgo Cambará, filho de Luzia Silva e Bolívar Cambará, em
um ato político, liberta todos seus escravos. Ativista republicano, Licurgo vislumbra,
na celebração da elevação do povoado de Santa Fé à cidade, a sua própria projeção
política através dessa atitude humanística e abolicionista. Os negros
alforriados porém, celebram a suposta liberdade no quintal do sobrado, sem
acesso às comemorações que se seguem no salão da casa. Adentram a sala, um a um,
apenas durante uma cerimoniosa entrega da carta de alforria, sendo que durante
esse tempo os donos do sobrado têm o cuidado de abrir as janelas, para que o “futum”
da senzala não infeste a sala. Nessa mesma noite Licurgo descobre que sua
amásia, Ismália, espera um filho. Noivo de sua prima Alice Terra, ele decide
que o filho de Ismália não pode nascer. Ismália, filha dos empregados da
estância, existe apenas sob o ponto de vista de Licurgo. Ao contrário do
que ocorre com Ana Terra ou Bibiana, em momento algum Érico Veríssimo narra os sentimentos,
pensamentos ou anseios de Ismália. Sequer conseguimos entender o motivo pelo qual, após ser estuprada por Licurgo ela mantém um relacionamento de longo prazo com ele. A mulher sem voz, subjugada socialmente é
sutilmente retratada pelo autor, tocando o dedo em mais umas das nossas muitas
chagas sociais.
Estamos
no século XXI. Negros e mulheres no Brasil, embora em equivalência numérica com
brancos e homens, ainda precisam lutar diariamente por direitos básicos, como o de ir e vir. É como se aqueles mesmos
habitantes de Santa Fé reencarnassem vezes sem conta ao longo dos séculos, e
permanecessem destilando seus ódios e preconceitos. E o pior, ocupando os
mesmos cargos de poder.
Me
pergunto até quando o povo brasileiro vai perpetuar essa relação de poder. O
direito ao voto foi sem dúvida uma conquista e um progresso social importante,
porém ainda não fomos capazes de consolidá-lo como instrumento de poder, como
nos provam os seguidos golpes imputados
contra a democracia. Me pergunto até quando o povo, composto em sua maioria por
minorias, vai permanecer subjugado por uma classe espúria, movida apenas pelos próprios interesses.
O
vento da tecnologia ventou, mas o tempo da evolução dos sentimentos parece permanecer
estático no Brasil. Enquanto observamos legislação cada vez mais rigorosa contra racismo e misoginia na maioria dos países do mundo, nosso país
segue provincianamente executando as minorias. Diariamente.