quarta-feira, 4 de maio de 2016

DAVI

Davi

Quando o conheci  era um fiapo de gente. Nascido prematuramente, Davi devia pesar pouco mais que um quilo. Era preciso firmar a vista dentro da incubadora para conseguir  distinguir o que era Davi e o que eram fios e aparelhos. Além da prematuridade havia nascido com uma doença no coração. Seu irmão gêmeo não apresentava outros problemas e apesar da prematuridade estava bem.

Davi não ia tão bem! Era necessário que se operasse o coração mas a fragilidade do seu corpinho dificultava essa tomada de decisão. Os dias foram passando e a questão cardíaca começava a prejudicar os rins. A pele  daquele bebê negro tomava uma coloração amarelo-acinzentada, indicando a gravidade do seu estado! 

Após exaustivas  discussões com os  especialistas envolvidos decidimos:

-Vamos fazer a cirurgia cardíaca! Esse  corpinho não será capaz de se manter por muito mais tempo dessa forma! Corramos o risco! 

A chefia não concordou: 
-Davi vai morrer no bloco.

- Mas chefe, se ele não operar vai  morrer aqui!

-Eu contraindico a cirurgia! A responsabilidade é sua.
Vesti toda minha coragem e tomei a decisão com a convicção que vibrava na alma. Mandei Davi ao bloco.  Davi retorna da cirurgia mais morto do que vivo! Mas pulsava debilmente um fio de vida. E aquele fio de vida  foi sendo cuidado.  Cada passo do tratamento era meticulosamente estudado, discutido, pensado, revisto. E a vida ia aos poucos  se reestabelecendo, dando a cada dia sinais mais  robustos da sua presença.  Davi melhorava, mas não respirava! Não sem a ajuda dos aparelhos. Fizemos a traqueostomia, mas Davi nada de resolver respirar por  si mesmo! E foi ficando no respirador. E foi crescendo no CTI! Crescendo, sorrindo, nos cativando dia após dia com aquela carinha de quem estava muito bem obrigado! A verdadeira cor da sua pele se fazia mostrar, com toda a intensidade da sua beleza. Davi engordava, batia palmas, gargalhava,  nos deixava cada dia mais encantados.  
Com seu progressivo fortalecimento Davi foi aos poucos, bem lentamente, respirando. Eu sussurrava quando ele me fixava o olhar amistoso: "-Respira, Davi! Seu irmão está lá na sua casa brincando! Vai lá brincar com ele! Respira!"  E ele foi ficando cada  dia menos dependente dos aparelhos e mais presente nos nossos corações. A essa altura já fazia parte do nosso dia-a-dia. Já se fazia amar por todos.

Passado pouco mais de um  ano  entregamos Davi para sua mãe. Lindo, crescido, sorridente! Olhando para aquela criança tão forte e viçosa  era difícil  acreditar tratar-se daquele mesmo bebê que havia chegado escondidinho na incubadora! Davi era a vitória do amor, do cuidado que flui de dentro. Abraçamos, beijamos, choramos! Desejamos que o Davi vivesse uma vida plena e feliz junto com sua família! E viveu! Durante um ano.
Nessa semana chega a notícia de que Davi havia morrido de pneumonia! Os colegas do  hospital que o assistiram na última internação contaram que as questões sociais foram complicadas, talvez determinantes. Várias vezes internara desnutrido e sujinho! Sua família fazia o que podia dentro das suas condições muito distantes das ideais!

Com o coração muito entristecido desejei que o Davi tivesse vivido plenamente esse ano que passou fora do hospital. Desejei que tivesse disputado coisas com o seu irmão, que tivessem trocado uns sopapos, muitas gargalhadas e afagos. Desejei que Davi tivesse tornado sua mãe uma pessoa melhor, mais forte e mais humana. Que ele tenha mudado os rumos da sua família, ensinando como é possível superar dificuldades com  perseverança e alegria. Assim como nos ensinou!


Fiquei pensando na intrincada e frágil trama da vida, tecida por mãos astrais com possibilidades e determinações que nos fogem ainda ao entendimento. Não somos senhores da vida e da morte, não podemos reter em nossas mãos o tênue fio quando a trama já se iniciou a desfiar. Mas somos agentes importantes do destino. Se Davi  permaneceria nesse mundo por pouco tempo, ajudamos a fazer desse tempo um valioso instrumento. Possibilitamos a ele sair da incubadora, se relacionar, ver o mundo lá fora, e quem sabe mudar o rumo de algumas vidas. A história do Davi nos motiva a seguir com amor e alegria a despeito das dificuldades, porque acreditamos que nenhuma luta pela vida é vã. De cada luta saímos melhores, exultantes pelos acertos, engrandecidos pelos equívocos, fortalecidos pelas lágrimas que de forma ou de outra insistem em nos molhar as faces e nos lembrar o quão humanos somos.

3 comentários:

  1. Davi, meu anjinho desconhecido!
    Conhecer parte de sua História nos comove e motiva.

    Um nome tão forte!
    Uma criaturinha mais forte ainda!

    Fico a pensar na construção do enigma da vida...

    Seremos parte que destrói?
    Ou seremos parte que vitaliza?

    Não tenho dúvida, meu anjinho!
    Você fez parte da melhor

    Daquela que conduz e ensina!

    Obrigado pela sua História
    Que na linha do Tempo não termina

    Sopra constantemente em cada pequenino
    esforço que tivermos para valorizarmos
    vidas curtas e grandes como a sua
    vidas longas e pequenas, talvez, com a minha...

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